O clima em casa ficou beligerante por quase uma semana, até que chegou a mãe da inglesa: uma senhora muito simpática, bonachona de sorriso escancarado, que deixa à mostra seus dentes desgastados pelo tempo e amarelados pelo cigarro.
- Quer um drink? Eu trouxe muitas bebidas! - e assim me oferece bebidas, como que em uma atitude de resistência e rancor às restrições da cultura local. E não é bebidinha leve: é bebiiiida. Vodka. Uísque. Gim.
Desta vez tive que negar: já passa da meia noite, amanhã eu trabalho. Seu rancor é até compreensível: viveu longos anos em uma Arábia Saudita pré e pós 11/09, época em que ocidentais eram deliberadamente assassinados nas ruas deste país sem que isso viesse a ser notícia em jornais. Ela conta que até hoje os compounds (condomínios fechados) são protegidos por tanques de guerra, barricadas e fuzis. "É isso que mantém a paz", completa. Conta que mesmo com um calor de 50 graus, era obrigada a se cobrir por completo (ombros e pernas e olhos) para não ser perseguida nas ruas. Fica fácil entender porque não riu quando me viu vestido de árabe. Ficou com uma expressão séria e me olhando longamente, vendo coisas além de mim.
Nesta noite, enquanto ela me ensinava algumas palavras em árabe, chegou Souhir e um de seus namorados. Esse deve ser o titular: um rapaz alto, olhos claros, libanês provavelmente, que se parece com aqueles cantores jovens que aos domingos cantam músicas românticas no programa do Gugu Liberato. Nasceu na Arabia Saudita, fala árabe, inglês, francês e... grego. Souhir me apresenta dizendo: "Ele fala francês!". A mãe de Jo entra na conversa, tentando praticar a língua que segundo ela aprendeu na escola 50 anos atrás. Excitada com a torre de Babel, ela pergunta:
- E ninguém fala Jode?
- Jode! - foi uma interrogação coletiva. Jo explica repreendendo sua mãe:
- Jode é uma língua falada em New Castle. Minha mãe encontrou com uma pessoa em Dubai que falava Jode e agora pensa que todo mundo fala nossa língua...
Nossa língua, com pronome possessivo. Isso tem a ver com identidade. Divaguei um pouco e quando voltei a mim, estavam todos falando em árabe. "É claro!" interferi. Todos riram, pediram desculpas e voltaram a falar inglês. Pedi insistentemente para que voltassem para o árabe e fui dormir. Afinal, 2h da manhã é tarde para quem levanta cedo. O casal foi para o quarto e os demais foram para um sessão de shisha. É Ramadã e o mundo árabe fica acordado até tarde...
Seguimos assim em tempos de paz na casa. Ou de trégua.
18.10.06
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Um comentário:
Opa!
A lingüista de plantão precisa erguer o indicador e lembrar que a língua é, sim, identidade. Você mesmo não se "sente em casa" quando fala/ escreve/ lê/ ouve português?
Eu, pelo menos, sou mais eu quando falo português!
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