6.10.06

Enjôos, táxi e cinema Pashtu

Sexta-feira, 10:50h. Acordo, ainda meio enjoado pela noite de ontem que passo a descrever em minutos e faço um plano para o dia: tomar banho, limpar o quarto, arrumar o acesso à internet, ir no supermercado, no IKEA... ligo no 800-9090, descubro que o ônibus número 12 segue até Al Barsha, perto do Carrefour, e que para ir até o IKEA, preciso pegar 2 ônibus: até a estação de Bur Dubai, e de lá, o ônibus 44 até o Dubai Festival City. Ônibus existe, mas talvez eu leve o dia todo para me locomover...


Na caixa de som, silenciam sons de cítaras e vozes que variam de entonação, Marisa Monte passa a cantar: “ tempos tento encontrar um bom momento / alguma ocasião propícia...”. Imerso em uma cultura diferente, voltar-se para si mesmo às vezes é uma boa fuga, especialmente em uma sexta-feira, o nosso domingo.


Descubro que mesmo durante o Ramadã, alguns bares têm permissão de vender álcool, desde que não toquem música ao vivo. Um deles é um pub, o Double Decker. Estou em Jumeira 1, os demais brasileiros e portugueses estão no Hotel Number One, de frente para a Sheik Zayed Road, à metade do caminho para o recinto. Então eu vou em um táxi, eles em outro.


Depois que minha conexão com a internet caiu ontem à noite, tentei inutilmente reconectá-la. Provavelmente a inglesa saiu e desligou tudo. Isso não pode ficar assim... noto que já estou atrasado: já são 23:20h. Fecho tudo, troco de roupa e caminho até a Al Urouba Road, onde pego um táxi. Taxista paquistanês, que me passa uma impressão de má vontade, só ganha pelo outro paquistanês que me trouxe na volta, às 3h da manhã. Este último, após as duas perguntas iniciais de praxe (“De onde você é? E de que cidade?”) mudou de assunto. Ganhou um silêncio que perdurou até o final da viagem, e perdeu a gorjeta. Taxista para ganhar gorjeta precisa ser prestativo, de um país bem distante, falar idiomas de nomes impronunciáveis e ter uma boa história, feliz ou triste, para contar. Não possuindo estas qualidades, tem que ao menos ter boas perguntas para fazer. Preenchidas estas condições, pode até errar o caminho ou levar o dobro do tempo para chegar. Felizmente, este não foi o caso – errar o caminho – do primeiro taxista. Voltemos, então, à nossa conversa, enquanto o tráfego parou próximo à rotatória sobre o túnel da Sheik Zayed que nos leva próximo à Burj Dubai, a torre mais alta do mundo, ainda em construção, perto da qual se localiza o Double Decker.


Ele se chama Mamoud Ali, ou algo assim. Acho graça: lembra Wood Allen. O nosso Wood Allen paquistanês já está há 30 anos em Dubai e há 13 horas trabalhando, sem previsão de parada... meu humor também não seria dos melhores nestas condições. Ele vem de Peshawar. Então Urdu é sua língua materna, não? – pergunto. Na verdade – explica ele – minha língua materna é o Pushtu. Urdu utilizamos para nos comunicar com as pessoas das demais províncias do país, que falam outros idiomas. Urdu é a língua de unidade nacional”, conclui.


Pushtu. “É a mesma coisa que Pashtu?”. Claro – responde ele. É incrível como aqui nenhum conhecimento adquirido se perde, e aos poucos vão se encaixando, mesmo que muitos dias depois, como em um intrincado quebra-cabeças: semanas atrás, quando ainda estava no hotel, assisti em um canal franco-alemão chamado ARTE (muito bom, com programação ora em alemão legendado em francês, ora em francês legendado em alemão, http://www.arte.tv/) justamente um documentário sobre a forte tradição do cinema Pashtu. Coincidência ou não, o nosso Wood Allen vem desta mesma região.


Os filmes desta parte do mundo são caracterizados pela simplicidade, improviso e apelo desmedido para a violência e insinuações sexuais. Neste contexto, o longo cano da espingarda do mocinho que salvou a mocinha vira objeto fálico a ser cultuado e delicadamente alisado pela garota prostrada de joelhos a sua frente em sinal de gratidão, até que o rapaz aponta a arma para o alto e atira...


“Mocinha” é modo de dizer: ela não possui em nada o estereotipo das garotas de Hollywood, tem formas roliças, cabelo desgrenhado e maquiagem borrada. Olhos grandes, boca grande e lábios enormes pintados de batom vermelho, e as roupas não são de grife.


O documentário ainda conta que com a implantação das leis islâmicas no país, a exibição destes filmes foi proibida, mas ainda assim, esta cultura resiste: nos cinemas, há códigos que todos sabem. Em determinadas sessões para homens, um filme qualquer passa no cinema por 15 minutos, e em seguida, inicia-se o filme proibido para o deleite da platéia...


Mamoud comenta que é fácil comprar DVDs dos filmes de seu país, mas não disse onde. E passou a falar com orgulho de sua terra, talvez idealizada em sua memória após tanto tempo de Dubai: ele fala de montanhas verdes, rios e terras férteis e de uma brisa fresca que bate no final da tarde quando o sol se põe. “Aqui é só deserto, nada mais”.


O táxi pára, a corrida fica em 9 dirhams, pago 10. É uma merreca de gorjeta, mas é 10%, está de bom tamanho. Por aqui, quase meio-dia e o álbum de Marisa Monte acabou: “Vai sabe...”. Não há mais nada a dizer sobre o senhor Mamoud Ali, Wood Allen paquistanês há 30 anos em Dubai e trabalhando há 13 horas, que fala pushtu, urdu e inglês.

Um comentário:

Alisson Dias Junqueira disse...

Luis,
bom texto com algumas risadas garantidas.
No meio, uma correçao: o canal ARTE nao é Suiço, e sim Alemao e Frances, produzido pelos dois paises. é talvez o melhor que vejo na França.
Sds,
alisson