Tiro os jornais do caminho e, d'entre uma folha e outra salta uma aranha que se põe em retirada.
Pobre aranha: ela não escolheu ser aranha. Assim, como eu, que não escolhi ser o que sou. Com uma diferença: sou "imagem e semelhança", que me dá super-poderes. Então eu posso. Ela não: é apenas aranha. Ela, na iminência do perigo, corre. Na iminência do perigo, às vezes corro também, mas neste caso, levantei o pé. Reação instintiva: sabe-se lá em que momento aprendi a ter medo de aranhas. E a minha reação ante ao perigo é destrui-lo.
Pobre aranha: ela corre inutilmente. Inutilmente, pois meu pé já vai a caminho. Mas ela faz o que pode, corre em zigue-zague, estica as pernas em sincronia rápida, faz o que está a seu alcance. Mas que pena: o que está a seu alcance... ainda é pouco. E talvez ela nem saiba...
Meu pé alcança a aranha. Morte instantânea. Em uma fração de segundo, geléia. Já não corre mais. Consolo: você, leitor que viu a cena, dirá: "ela fez o que estava ao seu alcance". Outros, mais conscientes dos desejos aracnídeos, dirão: "ela morreu fazendo o que gosta". Alguém ainda vê a questão por um outro lado do prisma: "ao menos não sofreu". Alguém, notando minha consternação perante o cadáver, põe a mão em meu ombro: "Esse é um animal ruim: vive de matar outros animais de forma cruel". Mas o fato é que ela agora já não é mais. Com um papel higiênico, limpo o azulejo, e em breve, ninguém mais se lembrará da pobre criatura...
Limpo a sola do sapato. Tiro a roupa, hora de dormir. Fecho os olhos e de repente penso que a Grande Sola de Sapato chegará para mim também. Aflição, aperto no peito. Desespero... ainda bem que sou Humano, e que para nós, nos foi reservada a Grande Gincana da Vida. Amanhã faço uma boa-ação e já garanto o "depois" pós-geléia. Pós-pó. Ufa, que alívio: durmo tranquilo, acordo, tomo café com pão-com-manteiga. Faço o trabalho desagradável com o peito cheio de esperança: hoje é melhor que ontem e amanhã será diferente. Faço o que está a meu alcance, e esqueço meus limites - 2010, 2015, ... com sorte, 2050? - enquanto a Grande Sola segue seu caminho pelo tempo.
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4 comentários:
A sua casa virou zoológico?
Cadeia alimentar ao vivo e em cores!
2050, tomando um chá sabe-se lá onde.
Limeira? Talvez não, mas seguramente olhando desconfiado para cima, em busca de uma sola de sapato.
Caramba! De onde surgiu esta aranha??? Nunca vi uma aqui em Bahrain... Mas estou certa que tive foi sorte, porque só pelos corvos que tem aqui (isso mesmo, corvos!), deve ter de um tudo neste lugar. bjs.
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