12.5.08

África do Sul: "a guerra de nossos pais"

Já passa da meia-noite e ele está lá no terraço, com uma garrafa de vinho.

- Que foi, cara?
- Nada, boss... quer um copo?

Vinho não se toma sozinho, então subo, aceito.

- Eu ainda volto lá...
- Aonde?

Tomado pelo frenesi coletivo, alistou-se ao exército para defender algo que, segundo ele, só hoje compreende de fato. O que era para ser o serviço militar tornou-se sua profissão por cinco, sete anos...

- Imagine você, tão jovem - menos de 20 anos! - comandando um batalhão...

Memórias de uma conversa com uma garota da Emirates: ela contava que a amiga sul-africana estranhou quando recebeu o convite para estudar juntas:

- Você é a primeira branca que me faz esse convite... por que quer estudar comigo?

A noite segue no terraço:

- Éramos uma força semi-especial: eu , um outro branco, e quase uma centena de owambos.

África do Sul; África Sudoeste. Da base na fronteira, incursões Angola adentro, "in the bush", destocando emboscadas.

- Você já viu a selvas africanas? Mato alto... a gente ia beirando a estrada para evitar as minas. Os veículos derrubavam coqueiros maiores que esse aí...

- E a luta era para que?

- Nossa missão era acabar com os terroristas... hoje vejo: milícias. Gente boa, mas naquela época, estavam do outro lado; os comunistas...

Guerra complexa: naquela época, forças sul-africanas realizavam operações conjuntas com a UNITA de Jonas Savimbi no sul de Angola com o interesse de evitar a formação de bases guerrilheiras da SWAPO (South West Africa People's Organization) em sua luta pela independência da atual Namíbia. Ajudavam, assim, a UNITA a se defender dos avanços das tropas governamentais do MPLA, apoiadas por URSS e Cuba.

Dias atrás, na cozinha, conversava com o rapaz mais novo:

- Eu, na guerra? Já não é do meu tempo....
- E por que Dubai?
- Eu queria conhecer o mundo, viajar um pouco também... e a moeda aqui é mais forte. E no meu país, hoje é meio difícil... tem essas questões... - ele hesita - ...há algo que não se diz: ainda há muitos ressentimentos. De brancos com negros e de negros com brancos. E isso não se comenta, mas é preconceito também: se você procura um emprego, há uma preferência por negros... revanche?

Em uma escala em Viena, a garota da Emirates pede à amiga uma foto com o parque infantil ao fundo.

- Eu não gosto de parques infantis. Lá, eu não podia brincar: eram apenas para os brancos...

Épocas de Apartheid: parques, escolas, hospitais, praias separadas. Casamentos inter-raciais proibidos.

A garrafa já está quase no fim. Ele acende um charuto.

- Ainda quero voltar lá, só para ver como estão hoje as coisas. Eu vi fotos na internet dos locais exatos onde estávamos. Dizem que está tudo em paz. Para tirar esse peso das costas...

Seu amigo tinha 19 anos também. Conversa interrompida: ele estava ao seu lado, um tiro lhe varou a testa. Nesses momentos a guerra perde seu caráter ideológico e ganha novas motivações, contornos pessoais:

- Caçamos todos eles. Derrubamos um a um, 5 dias pelo no mato, sem dormir. Não sobrou nenhum, nenhum... Jesus! Éramos os dois únicos brancos no grupo mas todos os owambos choraram... as batalhas nos uniam.

Ele continua:

- Meu amigo... por que ele e não eu? Ele teria 42, como eu... a gente era muito jovem, no meio daquela grande merda, sem saber por que. Mas hoje eu sei: a gente lutava a guerra de nossos pais.

E na cozinha o rapaz encerra o assunto:

- Meu país é lindo, cara. Mas vai levar anos para o povo esquecer toda essa coisa ruim.

A garrafa já está vazia e meu copo também.

- Ei, boss: ainda vou voltar lá. Você vai receber um e-mail. Vai saber que é pra vir junto.

Aperto firme de mão: hora de dormir. Ele ainda fica com um resto de charuto e um dedo de vinho no terraço, pensando na vida, e nas mortes, talvez.

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