3.9.06

Noites de hotel – 3: a festa das mulheres de preto

Dica: comece a ler pelo Noites de hotel - 1

Dubai, Coral Boutique Hotel, quarto 403. Hoje é sábado (o domingo árabe), são 23h. Saboreio novamente o chá feito pela senhora gorda auxiliada pela sua horda de amigas de preto. Hoje foi mais um dia de aula, o assunto “como fazer negócios com árabes”.


Acordo cedo, antes de lavar o rosto, envio uma mensagem ao sr. Fanzil. “Sr. Fanzil, estou com o dinheiro e quero me mudar hoje”. Por volta do meio-dia, ele me liga: “Ok, vamos marcar um encontro. Fica marcado para as 18:30h. Eu te ligo antes de sair daqui”. Noto algo interessante por aqui: no cartão das pessoas, não é incomum as pessoas não colocarem e-mail. Tudo aqui se resolve por telefone ou no tête-à-tête. E tudo muda tão rapidamente que o e-mail é praticamente inútil: é preciso ligar de hora em hora para confirmar o compromisso firmado para o final do dia.


Subo ao terraço: uma névoa cobre a cidade, quase não vejo a Burj Al Arab e a sensação de calor é ainda maior. Encontro uma senhora brasileira, gerente do spa do hotel, que está aqui há 4 anos e meio. Ela fala duas frases em português e já volta ao inglês. Conta que ficou aqui 4 anos sem voltar para o Brasil. “Tenha calma, com o tempo a tristeza passa”, diz ela.


Pausa para o almoço com o Ghisi e com a Ana, no Ibn Batuta Mall. Qualquer hora conto que foi esse filho Batuta. Shopping center de igual tamanho ou maior que o Mall of Emirates. Na vitrine, promoções: um terno risca de giz por 100 dhs, na Pierre Cardin, 3 camisas manga longa por 80 dh. Compulsão... resistência. Eu já tenho camisa. E por que um terno para um calor de 45 graus? Prefiro um traje típico local. Pensando melhor, eu não quero nada. Voto de pobreza contra o consumismo puro e simples.


17:30h. Volto correndo para casa. Eu marquei às 18:30h e não posso me atrasar. No caminho, um taxista de Bangladesh que está aqui há 19 anos dá-me conselhos com seu inglês da maneira que pode: “Vant money, or vant tings? I’m here money. Vant money, no luxury cars. Vant luxury cars, no money. Vant night, no money. Vant money, no night. Vant apartment? No money. Vant money? Room Sharjah 5 friends.
I’m here money. I send money family Bangladesh. Return each 2 years”. Para se levar uma vida com o padrão mínimo de classe média brasileira sem confortos aqui, é preciso um salário de pelo menos 8 mil dh. Os rendimentos do taxista aqui devem girar em torno de no máximo 3.000 dh/mês. E ele ainda manda dinheiro para a família em Bangladesh... penso nas bicicletas que quero comprar, nas camisas da Pierre Cardin, nos lençóis de fio egípcio, no celular com palm top, câmera, wi-fi e GPS, ... um sentimento de culpa enorme me corrói por dentro. Êita mundo injusto.

19:30h. Já estou em casa, já enviei mensagem ao senhor Fanzil. Nada. Agora ele me liga e diz: “você vai ficar por aí? Preciso resolver uns problemas e te ligo logo em seguida.” Uma das senhoras de preto dança sapateando sobre a mesa da sala, enquanto as outras batem palma no ritmo e fazem um barulho ensurdecedor com a língua. Resigno a lhe responder: “Ok, take your time”. Esta é uma das frases mais ouvidas por aqui, junto com a expressão “Inch’Allah” (se Deus quiser). Abro o livro que ganhei e ele é certeiro:


“Paciência e flexibilidade, mais do que qualquer competência técnica, são as primeiras qualidades necessárias a quem deseja trabalhar ou fazer negócios com países do Golfo.”


Ele vai mais além:


“Muitos árabes atrasarão ao máximo a resolução de certos assuntos até que o humor, momento e o lugar conduzam a ele. (...) O efeito, em termos ocidentais, é que um atraso grosseiro pode perdurar até que chegue o momento correto.”


20:30h. Peço conselhos à inglesa por SMS. Ela responde: “Ele é um loser. Ligue insistentemente para ele. Não pague pela cama.” É sempre bom ter um amigo negociante por perto para pedir conselhos. Eu me sinto uma criança de 5 anos de tão inocente. Volto a ligar para o sr. Fanzil, que simplesmente não atende o telefone. Envio mensagens, nada.


22:30h. Ainda nada. O telefone toca, é o Anderson, o brasileiro. Ele pede desculpas por não ter saído comigo no dia anterior, e pergunta insistentemente se estou bem - quem está por aqui, sabe como é que é. “Vamos à Peppermint?”. Inch Allah eu irei. A algazarra das senhoras de preto e de dentes podres aqui na sala não me deixa pensar. Uma delas, a senhora Indignação, chora de tanto rir. Começo a entender as coisas, mas talvez já seja tarde. É preciso fazer um teatro, ligar insistentemente, mostrar descontentamento, para que a pessoa entenda que o momento inadiável de resolver o assunto chegou.


Subo ao terraço para a espairecer, e converso com o funcionário Rachid. A conversa em inglês corre com dificuldade, então pergunto de onde é. Marrocos. Ele fala francês também e a conversa agora transcorre um pouco mais solta, embora sua língua materna seja mesmo o árabe. Rachid está fora de seu país desde 81, e conta com ar duro o último encontro com a família, há 1 ano. “Há novos membros na família que não conheço, e não reconheci meus irmãos...” Ploch! A gorda maior de todas pula na piscina de roupa e tudo, enquanto as demais senhoras dançam de pé sobre o muro, fazendo coreografia. Senhor Rachid, por favor, vamos falar de coisas mais amenas. Descubro então que o ônibus que vai ao centro passa de hora em hora ao lado do hotel, e custa 2,5 dh, contra 30 dh de uma viagem de táxi, e que a água do mar hoje estava a 45 graus. “Não dava para entrar, eu testemunhei!”, disse ele.


23h, voltamos ao momento presente. Talvez seja tarde já. O sr. Fanzil decididamente não virá, e lançou por água abaixo todo o meu planejamento de pegar a chave da casa as 18:30h, dar uma olhada no quarto, e quem sabe, tomar um chá em algum estabelecimento perto da praia, encontrar um acesso à internet e me teletransportar daqui para outro lugar. Agora quem está sobre a mesa sou eu, e as senhoras de preto fazem uma ciranda a minha volta, rodando em círculos de mãos dadas cantando: “otário, otário, otário...”


Desisto de sair, tomo um banho, deito na cama. Idéia: ligar para o exterior. Consulto as tarifas, surpreendentemente o preço é barato. Ligo uma, duas, três vezes. Não atende. A senhora Solidão, a gorda que está aqui ao lado, tem uma reação surpreendente: começa a crescer, crescer, crescer, e já ocupa todo o volume do quarto e me amassa contra o colchão. Mais uma idéia: escrever. Abro o notebook e fuzilo as teclas. Já não penso mais em nada, apenas escrevo. Aos poucos a gorda volta ao seu tamanho normal.

3h. A senhora Solidão foi vencida pelo sr. Cansaço, que está de pé sobre minhas mãos e apoiado sobre minhas pálpebras. Por fim, ele fecha o computador, deixa-o na escrivaninha ao lado, e apaga a a luz.

6 comentários:

Gnomo disse...

A saga "Noite de Hotel" está estupenda. Muito bem escrita. Continue escrevendo assim e já vai estar preparado para seu primeiro romance :)

Anônimo disse...

Fala Luisones! Cara, força na cueca ai , meu! Logo, logo, vc já vai estar cheio de amigos e chutando a bunda dessas senhoras gordas de preto por aí... Enquanto isso, continue mandando notícias 'arábicas' pra cá! Abração e se cuida,
Omar.

Anônimo disse...

Plim.
A lágrima escorreu pelo lado esquerdo do rosto.

Anônimo disse...

Porra Luisão, pára com esse negócio de DW e vai ser escritor, narrando suas aventuras pelo mundo... Puta talento desperdiçado...

[]s

Maeshonista disse...

Luisão... Segura a peruca aí! Estamos na torcida por você. Coincidentemente hoje eu li esse trecho do Chico. Achei lindo. Talvez você curta.

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais...

Bjs - Lana (do Cancela)

Anônimo disse...

Gênio. Fantástico.

Só não seria mais engraçado se não fosse um pouco trágico.

Força aí luisão, e se a gorda-de-preto-com-bafo-fedorento aparecer de novo, passa a mão na bunda dela.

Abraços,

Flavião.