10.9.06

Era uma vez...

... um rapaz que foi trabalhar em um país muito distante. Quando lá chegou, foi convidado para um "evento de apresentação da empresa". Ele ficou muito feliz, pois no último emprego, ele havia ficado muito triste, pois havia perdido um treinamento de Liderança, mas havia sido por uma boa razão.

O evento ia bem, como todo evento de apresentação de empresas deveria de ser, com direito a bolachinhas exóticas amanteigadas, chás do Ceilão (outro país distante), e pães da Conchinchina, quando finalmente apresenta-se uma mulher muito animada e sedutora e começa a dizer coisas muito bonitas: "você sempre pode se auto-motivar!". Nossa, mas como eu nunca pensei nisso antes? - constatou animado o rapaz, diante de um mundo de possibilidades que se abria a sua frente.

A mulher se apresentou, e melhor a empresa: era uma filial de uma companhia de capital misto sem fins filantrópicos, controlada majoritariamente por uma seita proveniente da Índia que expandia seus negócios neste país distante. A seita tinha um nome muito esquisito, que se escrevia com um alfabeto muito diferente. Aportuguesando-o, fica mais ou menos assim: "Éhrre-Agah" (não tente entender: na Índia há muitos idiomas, e muitos nomes impronunciáveis). Então ela apresentou slides e fotos de nuvens, e de um céu muito bonito, com um azul muito azul. E mostrou pessoas muito sorridentes: adultos, crianças e muitas mulheres, coisa rara por esse país. Todos tinham dentes muito brancos, como nenhuma escova ou tratamento dental proporcionaria. "Eu preciso ser feliz como essas pessoas!", pensou o rapaz.

Neste momento, ficou triste e entediado. Justamente neste momento, começou a pausa para o café. "Ei, senhor, você está bem? Você está com sono? Você está com fome?", perguntou uma garota, que apesar de solícita, não tinha o sorriso branco da foto. Era uma monitora da seita. A seita inventou uma coisa muito legal: carreira! Você começa como monitor, e um dia consegue chegar ao posto supremo de todos os postos: apresentador! Mas só sobe na carreira quem é ambicioso e segue atentamente as regras: não descuidar um só instante, observar, não deixar que as ovelhas - como são chamados os novos recrutas - se percam do rebanho. A fórmula é simples: demonstrar atenção, e criar um constrangimento para que a pessoa decida por ela mesma a aceitar as regras. E assim, foi com o rapaz, que logo voltou para dentro da sala, já conformado com seus dentes amarelos e sua desmotivação de ovelha nova despelada.

"Será que eu consigo me motivar?", penso ele, já dentro da sala, ansioso e curioso. A resposta estava por vir, pois começava o melhor momento da apresentação, o momento mágico da Revelação. A senhora animada e sedutora, ainda tomando seu Earl Grey do Ceilão, apresentou metodicamente o método, um mantra a ser proferido, o caminho único para se alcançar o êxtase:

- Vocês devem ficar de pé, respirar 4 vezes profundamente. Então, diga em voz alta, grite, olhando para cima: "Yes! Yes! Yes! Yes!". Vamos todos juntos!

E assim, a turba ruidosa começou a recitá-lo em uníssono, com as mãos cerradas, sorriso no rosto, e olhares para o céu:

- Yes! Yes! Yes! Yes!

Foi o delírio. O rapaz pensou em desistir, mas voltou atrás ao cruzar o olhar desaprovador da monitora. A senhora animada e sedutora deixou então sua chávena já vazia sobre a mesa ao lado e concluiu, mostrando racionalmente à turba ainda entorpecida por tantas revelações o porquê das coisas serem desta forma:

- Seguir este mantra é o único caminho para felicidade e realização suprema, o caminho para o único deus que existe: o deus Motivation.

- Ooooooooooooooooh.... - surpreendeu-se o rebanho com tão estrondosa revelação.

Alguém lá do fundo de súbito levantou a mão e fez uma pergunta que desencadeou olhares desaprovadores de todos os monitores e a ira da senhora animada e sedutora: "Senhora, este mantra é o mesmo que brain washing?"

A senhora não se rebaixou a dar uma explicação tão óbvia. "Como alguém tão estúpido poderia não ver uma coisa tão clara dessas? É claro que este tal de brain washing é mais uma invenção de céticos ianques dispostos a roubar o nosso mercado e a dispersar as ovelhas do caminho da verdade, a única que existe. Pior que eles, só aqueles que vendem a panacéia da reprogramação cerebral", pensou o nosso rapaz, em sintonia com os demais da sala.

Notem que nosso rapaz já pensa como um monitor, e mesmo sem receber ordens, tomou a liberdade de se juntar àqueles que expulsaram este herege da sala, a socos e pontapés. Mas o maior castigo que lhe foi imposto foi mesmo não poder ver a Prova Real, a solução da Equação Sagrada, o Segredo Supremo do Universo. Ele chorou desesperadamente do lado de fora do recinto, enquanto os demais saboreavam a cereja do bolo, ainda mais cereja e saborosa ao se saber que havia alguém do lado de fora desejando-a inutilmente, e ela estava ali, diante de seus olhos, tão tenra e luzidia... a senhora sacou uma flecha grossa e com fina ponta de aço e desafiou a sala:

- Vocês acreditam que é possível quebrar esta flecha apoiando este bico pontiagudo no seu gogó?
- Nããããããããããããããããão!
- Então toma!

A mulher se transformou. Fechou os olhos e abaixou a cabeça em silêncio. Respirou fundo 4 vezes, e rugiu de maneira imponente: "YYYYYYYYYYYYYYYeeeeeeeeeeesssssss!". Quando se viu, lá estava a flecha partida ao chão, nem uma marca no pescoço. Era a prova maior da existência e eficácia do Senhor Supremo Motivation.

O rebanho não se conteve. Alguns choraram, outros rolaram no chão em êxtase, outros ainda andaram de joelhos delirando. Mas não era o fim, a senhora queria mais:

- Vocês também podem quebrar a flecha! Não só podem como o farão AGORA!

Não houve tempo para a turba se manifestar: os monitores já alinhavam as ovelhas, para a Prova Real coletiva. O nosso rapaz desacreditou, sentiu pavor, mas achou melhor não ousar fugir: "os monitores são muito bravos, e só querem nosso bem", pensou. Contentou-se então com o último lugar na fila.

Chegou então o Momento. Respirou fundo 4 vezes. Proferiu o mantra, com os punhos cerrados e olhar para o céu (minto, para o teto da sala, mas viu ali o céu azul com lindas nuvens que havia visto na apresentação). Olhou para a flecha de ponta fina, representação da vida e da morte. Sentiu um súbito calor no peito, que foi subindo, subindo, subindo, e se concentrando em seu pescoço. O resto do rebanho, seus amigos companheiros, não o abandonou e vibrava junto: "Yes! Você consegue!!", "Yes! Você pode!". Prendeu a respiração e sem tirar o olho de seu alvo, destroçou-o com uma força que depois descreveu como "descomunal e milagrosa": o deus Motivation havia lhe dado as mãos e ele agora chorava confuso e comovido. Precisara sair de seu país para terras tão distantes para finalmente encontrar o que queria: a Verdade Suprema.

Êxtase geral. A senhora sedutora agora gritava e pulava nua pela sala, seguida por seus febris séquitos. Alguém rabiscou na parede: "Éhrre-Agah, o único caminho". Homens abraçados e suados (sim, fazia muito calor) gritavam: "Hei, hei, hei! Motivation é nosso Rei!!!".

Todos deixaram a sala lívidos e prontos para conquistar o mundo, e mal notaram o corpo maltrapilho que jazia no canto da porta. É o fardo que cabe aos incrédulos: desprezo, morte e esquecimento.

5 comentários:

Anônimo disse...

AAHAHAHHAHAHAHAHAHAHAH!!!
Chama o Paulo Coelho!!!!!!!

Anônimo disse...

Putamerda Luisão.

Anand disse...

As crônicas do Luisão se superam a cada dia. Mas nada supera aquela da ec-97, acordando numa banheira cheia de gelo.

Anônimo disse...

Puxa, isso me lembra uma dessas sabedorias "inside the scene" que eu li num livro chamado "O sobrevivente". O cara faz parte de uma dessas seitas suicidas, quer se matar, mas todos tentam mantê-lo vivo, não se sabe ao certo pra quê. Bom, voltando à vaca fria, ele revela que qualquer atividade que envolve uma respiração alterada vai induzir ao estado de êxtase. Por isso as igrejas evangélicas carismáticas prezam tanto as aleluias entoadas em conjunto, os candomblés entram em transe quando cantam e dançam e os ioguis dizem que saem de seus corpos.
Ô lôco! Se respirar em ritmo diferente, pira, se parar de respirar, pifa.

Anônimo disse...

Hahahaha.
Só você....
Danilão lembrou muito bem as aulas de Yoga Tântrico.
Abraços,
Flávio.