Quinta-feira, fim da segunda semana de trabalho, semana em que a euforia da chegada e a “Lua de Mel” começa a dar lugar à vida cotidiana. Começa, de fato, a vida no estrangeiro.
19h. Chego ao hotel. O centro da cidade está a 20 km daqui, então o roteiro pós trabalho é: hotel – Mall of the Emirates – hotel. Faço a janta, ligo a TV: na BBC e na CNN breaking news. No Discovery Channel, o leão mata suas habituais zebrinhas. As zebrinhas morrem sem saber que viraram estrelas de TV. Em um canal árabe, vejo um jogo de futebol árabe, tão ruim que me faz lembrar os jogos da Inter de Limeira. Em um canal de música (árabe), uma garota (árabe) canta uma música triste (em árabe) com imagens de crianças feridas e o Líbano destruído ao fundo... bola pra cima, vamos lá, mostre-me algo mais animado, você consegue. Encontro outro canal de esportes: uma emocionante corrida de carruagens de cavalo com obstáculos. No canal seguinte, uma animada partida de golf. O canal seguinte é justamente o que eu preciso, um Fala que Eu te Escuto muçulmano: as pessoas ligam e um barbudo formula respostas divinas... em árabe. Desligo a TV.
Abro a janela, janto olhando os carros passando na Sheik Zayed Road, o bochorno noturno invade o recinto. Olho para a sala e no sofá estão sentadas algumas senhoras de preto,com vestido longo até o pé. Elas me olham e riem sarcasticamente: são as frustrações da semana. A mais da esquerda, a diarréia que me acompanha há 3 dias (desconfio da água destilada vendida nos supermercados e restaurantes), a do meio, a dificuldade para fechar negócio com o árabe, a da outra ponta, a internet censurada, a dificuldade de comunicação. Na cadeira em frente, está o meu celular que pifou, na outra, o novo celular, o mais sem-vergonha que encontrei pra vender. Ainda há outras, pelo tamanho se vê que são menores, e se escondem pelos demais cantos e móveis do sala, outras insistem em subir em meus ombros, puxam meus cabelos até caírem.
Volto à pia, lavo a louça. Volto à sala, peço licença às senhoras e sento. O que fazer? Silêncio. Apenas os risos das senhoras Frustrações. Vou à mesa e busco referências: um livro, um perfume, uma foto; um classificados de jornal. Ansiedade. Idéia: o telefone! Tento um, dois, três números em vão. Penso em internet: não, não dá. Nesta hora, batem na porta, é mais uma senhora de preto, a maior de todas, convidada das demais, freqüentadora assídua das casas de idosos, que me faz agora uma visita. Ela me dá um abraço apertado: é a solidão. Ela segue para o fogão, esquenta água e me faz um chá. Chá de boldo com fel.
Vou ao banheiro – agora é a senhora Solidão que me acompanha – tomo banho, ponho pijama, telefono novamente, em vão. Outro abraço apertado, abraço azedo, abraço amargo. Deito na cama, tento ler, em vão. Será que aqui há CVV Samaritanos? São 10h, apago a luz. Ouço o coro de risos. A Solidão agora me observa de cima pra baixo, agaixada, em cima do canto esquerdo da cabeceira da cama. Fecho os olhos. Cadeiras se arrastam no quarto ao lado, carros passam na Sheik Zayed Road: a vida prossegue lá fora. São 10:02h. Respiro fundo, o ar entra apertado no peito. São 10:03h. Algo cai sobre o meu rosto: abro os olhos, é esta senhora de mãos e dedos gordos e unhas grandes pintadas de preto que abre a mão e joga sobre mim areia do deserto e susurra “você está só... você está só... você está só”. São 10:04h. Acendo a luz: pra mim chega.
3 comentários:
Eu acho que eu li segurando o ar porque quando terminou eu dei um suspiro tão grande!
Uma senhora veio até aqui e enxugou minhas lágrimas. Perguntei seu nome e ela disse saudade.
Solidão é um doido varrendo o mato.
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