Viro a esquina para esquerda, agora para a direita. Rua vazia, rua escura, olho então para o rádio, ligo, olha para a frente, nada. Ironia: sintonizo na Dubai Eye e não vejo o vulto a minha frente. Quando vejo já é tarde, já está diante da roda direita. Quando freio, já foi.
Não fez barulho. Não deve ter sido nada. Estou vendo coisas. Mais à frente, um casal que faz uma caminhada leva as mãos à cabeça. Abro o vidro e ouço um senhor barrigudo de meia-idade:
- Como você tem coragem de fazer isso? Você não olha para a frente?!
Olho pelo espelho e vejo uma bola felina imóvel no asfalto - eu não vi.
- Matou um pobre animal que não faz mal a ninguém... disgusting!
Ainda que sem intenção, matei um gato. Busquei naquele senhor alguma expiação, coisa como "foi por pouco, ele escapou", "passou por cima mas não matou" ou "gato tem 7 vidas, agora só 6", mas encontrei apenas acusação e o peso da culpa.
Valores de uma sociedade: quantas vacas, porcos e frangos são mortos diariamente nos frigoríficos? Ato deliberado... cruel? Uma vaca ao ser morta pelo método judeu recebe um corte no pescoço que lhe abre a artéria, e sangra até a morte. Tem mais sorte que as demais que morrem com marretadas na cabeça. Em uma granja, os frangos vão seguindo pela esteira. Na linha de produção, em um ponto se quebra o pescoço, em
outro se separam as penas, noutra as pernas, crista, e cabeça. Tudo se aproveita. Quando a faca perfura o coração do porco, dizem que grita como um ser humano. E provavelmente o senhor a minha frente come um bife ou um balde de frango no KFC sem dores de consciência. O que salva o gato de tal sina? Uma carne magra? Ou talvez o amor, esta coisa linda que une as pessoas que se merecem e os animais de estimação.
O senhor está transtornado. Impossibilidade de diálogo, subo o vidro e sigo, enquanto a mulher que o acompanha ordena ao agregado indiano que tire a bola de carne, pêlo e ossos partidos do meio da rua. Morte digna, nada se aproveita: enterro em um saco preto no ataúde de lixo.
Uma fração de segundos que muda tudo: desta vez era um gato - há muitos gatos na vizinhança. Mas poderia ser uma criança - há muitas crianças na vizinhança. E se fosse uma criança, eu seria um assassino. Por ora sou apenas um distraído insensível. Carro é uma arma.
26.3.07
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5 comentários:
Sheik, cuidado!
Dri
Queria te enviar isto faz tempo, pelo fato de vc ser vegetariano e tal:
http://www.meat.org
Bom proveito!
PS. Toda hora que como hamburger agora lembro das imagens.
Abraço
Luís,
Belo post. Não sei o quanto tem de literatura no seus posts. Com muita destreza abordou dois temas pra lá de caros.
Abraços,
Juliano
ahuahuah Ótima sheik!
Ui, preciso parar de comer carne!
E acidentes acontecem! Lembre-se de que tem gente dirigindo bebada por ai e se matou, no dia seguinte nem lembra...
Distraido sim. Insensivel nao.
Right?
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