14.2.07

Quarta-feira de cinzas

6h da manhã. Na ponte que separa a cidade das dunas, os músicos encerram assim mais um ciclo de sonhos, e agora todos ali se entreolham e dizem: mais um carnaval que passou. Lá no mar, aponta o sol iluminando a praia, apressando os casais que se conheceram na noite anterior e correram para as dunas fazer o sexo mais marcante de suas vidas: olhando o sol nascer. O rapaz agora fecha a bermuda, a garota recoloca no lugar o sutiã, põe novamente a calcinha e abaixa a saia, e seguem juntos abraçados de volta para a cidade, com uma pequena pausa para um rápido banho de mar. E assim - músicos exaltos, casais em tórridas e infrutíferas paixões, rapazes e garotas bêbados, a turista européia com o pescador do vilarejo que também fornece as drogas para turistas, todos voltam caminhando pelo mesmo caminho, todos com o mesmo destino: a padaria.

A padaria é pequena e não está preparada para o afluxo anual de turistas, sempre e apenas nesta época do ano. Então alguns entram na fila enquanto o pão não sai do forno, outros aguardam do lado de fora, fumando um cigarro ou tomando a última cerveja antes do café-da-manhã. A fila cresce, e entre mosquitos e um calor crescente, acontecem ali as últimas interações do Carnaval.

- Bin Laden! Bin Laden! É o Bin Laden! - um rapaz dá tapas insistentes nas costas do rapaz ao seu lado e agora tira a câmera - eu quero tirar uma foto ao lado do Bin Laden! E tira a foto.

Aníbal, apesar do aspecto agressivo passado por seu corpo sem camisa coberto de tatuagens, transmite afeição ao dar uma gostosa e sincera gargalhada apenas por ver alguém diferente ao seu lado. Sua cabeça de cabelos grisalhos e ralos não escondem a sua idade e suas histórias que agora ele começa a contar sem que alguém lhe peça e sem se dar conta de que falava em um tom de voz desnecessariamente alto e incompatível com o pequeno ambiente:

- Está vendo o carro ali fora? - e aponta para uma pequena caminhonete com uma moto cross sobre ela - cheguei às 4h de Arraial. Vim direto! Rapaz, que carnaval... estávamos em 10 em uma casa. Quanta loucura... tinha de tudo, de tudo mesmo, entende? Tinha até uma coisa que se dá para cavalos... 4 dias seguidos, ninguém dormiu. Eu fui o que mais dormiu: 2h por dia. E amanhã eu trabalho... - ele acende um cigarro e olha para a cozinha e após uma pausa, continua:

- esquema tranqüilo. O dono da casa é juiz, ninguém mexe com ele por lá. Muita mulher cara... era só falar que tinha, que elas vinham... comi oito neste carnaval, cara! Mas tudo seguro, com camisinha. Sem camisinha é bom, mas agora eu tenho minha filha... eu ainda quero vê-la crescer.... decidi de última hora que viria para cá, pra abaixar a adrenalina antes de voltar para casa. Sou advogado e trabalho em BH. Ainda tenho 7 horas de chão! Vou direto...

Ao lado, aproxima-se o pescador: negro mestiço de olhos puxados, braços fortes, braço de pescador. Ele senta em um banquinho e coloca seu peixe sobre seu colo: a garota de pele clara, que dobra sua cabeça sobre seu ombro, e fica cantando uma música baixinho em um idioma que ninguém ao redor entende, com o olhar oscilando entre aberto e fechado. Alguém no entorno inicia uma conversa, sob o olhar atento e firme do pescador:

- Where are you from?
- What? I'm ... from... hummm... I love this place. I love this place. I'm from here. I'm sure of it. I don't wanna go home.
- e volta a beijar o pescoço de seu protetor que curioso pergunta:

- o que ela disse?
- ela disse que gosta desse lugar.

Aníbal volta a falar interrompendo o diálogo:

- Mas você precisa conhecer a minha filha. Espera um pouco, vou pegar uma foto dela - e segue então para seu carro.

- E você, é daonde? Fica aqui até quando?

O rapaz considerou não ser uma boa idéia dizer muito de si a alguém que não lhe inspirava confiança e desconversou, enquanto a menina de pele clara lhe olha com olhos grandes e sorri:

- Não sou gringo não... ainda não sei quando volto...
- Olha a minha filha. Não é uma menina linda? Tem 7 anos... olha, a boneca da foto, dei pra ela neste natal... - ele fica ali parado por alguns instantes olhando a foto, com a mesma gostosa e cativante gargalhada, agora com olhar marejado e fixo para a foto. Ele pega então Bin Laden pelo braço com força:

- Olha! Ela é a coisa mais importante da minha vida! Eu faço qualquer coisa por essa menina, mas a mãe dela não me deixa vê-la! Filha-da-puta! Filha-da-puta! - e agora Aníbal abraça Bin Laden e chora um choro alto entre soluços que deixa todos no recinto estupefatos, em silêncio absoluto.

- Aníbal, seu café e seu pão. Come, vai te fazer bem. Vai lhe dar forças, e se Deus quiser, com a graça de Virgem Maria eu tenho certeza que vai tudo dar certo! Deus não falha!
- Obrigado, seu Ermelino, obrigado...

Seu Ermelino é dono da padaria. Com mais de 70 anos, ainda trabalha por teimosia e não entende o que acontece a sua volta, mas sente uma vontade enorme de ajudar o rapaz tatuado que chora a sua frente com saudades da filha. Ele levantou às 3h, tomou a massa que descansava sobre a pia - preparou mais massa do que habitual - e ficou até às dando forma a cada um dos pãezinhos que ia colocando sobre a forma para ir ao forno, enquanto sua mulher, sua filha e seus netos corriam para limpar a varanda e preparar o café - bastante café - e ferver o leite antes de abrirem. Ele volta para a cozinha e traz o segundo pão com queijo pedido por Aníbal.

Aníbal termina o café:

- Cara... eu preciso fumar um pra relaxar. Não vou conseguir assim...
- Por que você não vai mais tarde? Durma um pouco...
- Não cara, eu me conheço. É só um pra abaixar a poeira e já dá.
- Pega esse aqui - diz o Seu Ermelino, tirando um cigarro de palha.
- Não, Seu Ermelino... desse não dá. Eu vou pegar o meu mesmo. Obrigado!

Ele vai até o carro, tira um cigarro, acende, inspira e passa para outro que inspira e passa, que passa para outro que inspira e passa que passa para alguém que recusa e apenas repassa para alguém que inspira e passa...

- Bin Laden, você é um cara legal. Eu não posso mais com isso aqui. Fica pra você - e Aníbal deixa sobre o balcão uma pequena sacola transparente com um punhado de um pó branco.
- Cara... valeu, mas...

Seu Ermelino acompanha a conversa do outro lado do balcão e se interessa:

- É açúcar? Pode deixar aqui a gente não desperdiça nada...
- Seu Ermelino... não é açúcar...

Neste momento, o rapaz que apenas escutava a conversa tira o seu peixe do colo e se dirige ao balcão determinado:

- Pode deixar que eu cuido disso.

Tomou a pequena sacola, enrolou e colocou no bolso da bermuda, e voltou a se sentar, com a garota em seu colo.

- 7:30h, gente! Eu tenho que ir! - agora ele grita: - eu vou a BH e vou ver minha filha! 7h de viagem! Hoje eu vejo minha filha!

Todos da padaria, sem exceção, despedem-se de Aníbal, que entra no carro e sai em um desajeitado zigue-zague levantando poeira, enquantos todos ficam ali, do lado de fora do recinto, a abanar os braços.

Por fim, Bin Laden volta ao seu refúgio no Afeganistão, o pescador sai calmamente com sua gringa que caminha mordiscando seu pescoço, e Seu Ermelino atende a garota de 5 anos, descalça e de short e camiseta desbotada que aparece na porta:

- Bom dia Seu Ermelino! Meu pai pediu 6 pão, um pacote de Derbi, uma garrafa de leite e outra de Cavalinho!
- Aqui está, minha filha. São 5 reais.
- Ah... mas eu só tenho 3...
- Não tem problema minha filha. Então deixa a de Cavalinho e pede pro seu pai vir buscar mais tarde.

Do outro lado da rua, jovens de mochila nas costas amontoam-se na calçada aguardando a partida do ônibus. A menina volta para sua casa, não sem antes parar e abraçar o cachorro vira-latas esparramado na porta olhando a rua.

Diálogos e visitas que se repetem todos os dias. Após o fim das festas, o vilarejo volta aos poucos a sua paz usual.

3 comentários:

Edu, Jane e Carol disse...

Valeu pelas palavras de incentivo. As visitas das "mulheres de preto" à minha casa estão com os dias contados!

Danilo disse...

Em comemoração ao carnaval que está chegando e a você, meu amigo luisão:

ALLAH-LÁ-Ô
Marchinha de Haroldo Lobo e Nássara (1940)

Gravação de Carlos Galhardo

Tom - D (barítono)





D

Allah-lá-ô

A7 D

Ô, ô, ô, ô, ô, ô

Mas que calor!

A7 D

Ô, ô, ô, ô, ô, ô

A7

Atravessamos o deserto

D

De Saara

A7

O sol estava quente

D

Queimou a nossa cara

Allah-lá-ô

A7 D

Ô, ô, ô, ô, ô, ô

Mas que calor!

A7 D

Ô, ô, ô, ô, ô, ô


Em

Viemos do Egito

E7

E muitas vezes

Gm6 D

Nós tivemos que rezar

Allah! Allah! Allah,

Meu bom Allah

Mande água pra Ioiô

Mande água pra Iaiá,

A7 D

Allah! Meu bom Allah!

Anônimo disse...

E eu já estava me enamorando de vc;
Mas se estes contos são de vc, preciso repensar.

Admiradora secreta