1.2.07

O sorriso do palhaço e os arrependimentos eternos

Era uma tarde corriqueira de um dia de semana de uma pacata cidade do interior. Tempos de vida simples: ganhava-se pouco, mas as necessidades iam pouco além do estritamente necessário para viver. Os únicos luxos que a família dava-se o direito de manter era um aparelho de TV branco-e-preto e um telefone, pesado, cinza e grande, que repousava sobre uma pequena cômoda ao lado da TV, sobre uma toalha bordada à mão.

Algumas quadras dali, uma moça toma um chá, após o encerramento do atendimento aos clientes. Os dedos doem após uma tarde passando para letra de forma coisas que poderiam ser escritas a mão, mas que a formalidade daqueles tempos exigiam que fossem datilografadas em uma máquina Olivetti com o objetivo prático de que as pessoas não perdessem tempo em entender a escrita alheia. Ela nem imaginava que anos a frente aquele maravilha do mundo moderno desapareceria da face da terra substituída por uma máquina que já fazia a correção ortográfica e possuía teclas mágicas com nomes backspace e delete.

Pensou nos motivos que continuava a trabalhar em um emprego que não lhe agradava, na faculdade que não fez "porque é coisa de homens" e lembrou automaticamente das crianças que estavam quadras dali e na outra que estava em seu ventre agora. Tomou então o pesado telefone e ligou:

- Oi! Já vou chegar.

Muitos luxos tecnológicos servem para isso: para brincar de ditar o futuro, ou para se saber o que de fato já se sabe. E assim, temos relógios para saber que está tarde, termômetros para saber que está quente o suficiente para fazer suar, telefones para dizer "vou atrasar", quando na verdade atrasado já se está.

5:30h, já passa da hora. Ela fecha sua bolsa, guarda o caderno e as canetas na gaveta, coloca a capa de plástico sobre a máquina de escrever e vai embora. No caminho, passa em frente à padaria, sente então o vapor quente que sai pela porta, vapor de pão que acabou de sair. Entra, compra pão e pequenas rosquinhas doces. No caixa, viu algo que lhe fez lembrar novamente das crianças: um lápis, que na ponta possuía um palhaço encaixado. Não era nada de especial, mas imaginou os dois ali sentados na mesa com os pequenos braços esticados sobre a mesa, a fazer desenhos incompreensíveis e a conversar com o pequeno boneco encaixado na ponta do lápis. Levou 2, um para cada um.

Já são quase 6h. Os dois garotos já perguntam pela terceira vez que hora ele ou ela vão chegar. Após muita insistência, a empregada os deixa ir brincar na garagem, mas somente após confirmar que o portão de grades está fechado. "É perigoso", dizia. E eles ficavam ali, jogando bola, e paravam vez ou outra para sentir o cheiro de gasolina queimada que os carros que passavam do lado de fora deixavam no ar - e que consideravam cheiroso - ou para checar, mais uma vez, se um deles apontava na esquina.

E por fim ela chega, e segue para o quarto com as duas crianças atrás.

- Eu tenho uma surpresa - e tira da bolsa então um lápis para cada um, e fica parada, esperando a reação que imaginou na fila do caixa.

Um deles olha para o lápis, olha para ela: viu olhos grandes de expectativa, uma profunda olheira e cabelos desarmados pelo vento e por um dia de trabalho. Profusão de sentimentos que culminam em um único gesto: partiu o lápis ao meio e lançou-lhe ao chão. Puxou a coberta da cama e saiu correndo do quarto gritando de raiva... galo de briga não arreda pé: foi para o quintal e ficou lá, de braços cruzados e boca cerrada, aguardando a punição, de certo umas palmadas, que misteriosamente não vieram.

Curioso, caminhou até a cozinha, e da cozinha até a sala de jantar e viu então ela sentada no sofá, silenciosa, a trabalhar em um bordado. Ela fura minuciosamente o tecido com a agulha, indo buscá-la do outro lado, e furando mais uma vez, formando no tecido figuras incompreensíveis. Chega mais perto, e enfim a punição:

- Por que? - diz isso olhando nos olhos. Ela chorava.

Voltou para o quarto e recolheu os 2 pedaços de madeira. Tentou juntá-los, mas por alguma razão, eles não se juntavam mais. Queria voltar o tempo, mas mesmo que andasse de costas, o tempo simplesmente não voltava. Apenas o palhaço continuava ali a sorrir.

Lembraria deste sorriso anos mais tarde, tão distante em anos e léguas dali, quando o mesmo palhaço sorriu para ele, preso a um lápis à venda em uma banca de jornais. Comprou um, mas não o partiu ao meio. Desta vez, não teve a chance de dizer obrigado. Concebeu então que na vida não há segundas chances, e que certos arrependimentos são eternos.

3 comentários:

alexmrosa disse...

puta estória triste!!!!

Anônimo disse...
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Alex Cançado disse...

PouTz cara! Isso me faz pensar e refletir muito sobre as "cagadas" que já fiz... Valew Sheik.