25.9.07

Ramadã, DBAs e cavalo

Chego no edifício e não vou para o vigésimo sexto: uma conversa informal face-a-face é mais eficiente que e-mails e por vezes a melhor alternativa para esclarecer as razões de tantas demandas. Certas coisas não se explica por e-mail. O elevador para no trigésimo terceiro. Três lances de escada e lá estou no trigésimo andar.

Lá estão os 4 DBAs: um deles é nepalês. Você liga para o número dele e em vez dos toques normais de telefone, toca uma canção nepalesa. E é desse mesmo celular que ele reclama: ficou sem sinal no final-de-semana, quando não conseguiram contactá-lo às 3h da manhã. Entendo bem como são essas coisas, mas não reclamo: o que é melhor do que um celular que não funciona às 3h da manhã de sexta? É a tecnologia proporcionando o bem-estar do cidadão. Não troco o meu por nada. Logo a frente, está o outro, indiano - um pouco afoito, bem verdade, talvez inexperiência. Na ponta está o chefe, que nasceu no Iraque, passou a infância em Dubai e o resto dos anos na Nova Zelândia até decidir voltar a Dubai 'pelo lifestyle': em sua agenda estão os nomes da meninas mais bonitas (ou nem tanto) de Dubai, e você pode encontrá-lo em todas as aulas de salsa da cidade (obviamente não agora, durante o Ramadã). Ele estará em algum sofá recitando para alguma moça bonita alguns dos poemas que escreve em árabe, poemas que em tempos idos eram uma arma de guerra. Ou ainda são?

E por fim, o DBA argelino. Faltou explicar o que é DBA: Data Base Administrator. Eu e mais alguns ocidentais insensatos estivemos enfrentando um descompasso de produtividade nos últimos dias: o banco de dados de testes que estamos montando estourava de tamanho. Tentávamos ligar para o DBA às 13h, mas já era tarde: ele já havia ido embora. Insensatez sim: é Ramadã, ele acordou antes do sol raiar para beber água e fazer uma refeição, e iniciava o jejum de comida e água e "atividade sexual" que duraria até o final do dia. Comento que julgo a experiência do jejum durante o Ramadã válida e única. Ele completa: "melhor ainda quando o lado físico encontra o espiritual". Aí eu mudo de assunto. Ele seguiu a regra: chegou às 7h no trabalho, trabalhou 6h e foi embora. E quem vai dizer que está errado? Eu admiro a generosidade das nações islâmicas, que assumem os custos de uma queda de produtividade da economia para oferecer um mês aos seus conterrâneos no qual a prioridade oficial não é o trabalho: é a família, é a reflexão sobre a condição humana, é o momento presente. O futuro? Inchallah. No ocidente (no qual se incluem algumas nações do oriente), o Natal é um dia. No Brasil, o Carnaval dura quando muito, uma semana... não dá para comparar Carnaval com Ramadã, mas se fosse hoje criar uma nação, uma religião e um calendário, incluiria um mês de jejum, e um mês ou dois de orgias (puras e pesadas), pois julgo que ambos acrescentam algo à existência humana, e em excesso a degradam também.

Voltemos ao DBA. "- Ça va? - ça va...", tenho mais afinidade com o argelino, talvez porque falamos uma segunda língua em comum. Talvez porque ele também - conforme me contou outro dia no café antes do ramadã - teve e ainda tem grandes dificuldades para compreender os diferentes sotaques do inglês, sua terceira língua, e agora, forçosamente a mais usada. Explico para ele a nossa situação, ele concorda e firmamos um compromisso. Está feito, agora voltamos a conversar sobre o Ramadã: ele comenta para a minha surpresa que é a primeira vez em que ele passa um "Ramadã multicultural".

- Na Argélia, 95% da população é muçulmana, e não há estrangeiros. É muito diferente!

É muito diferente. Que gozado, esse foi meu comentário quando cheguei por aqui: eu nunca havia vivido em um ambiente majoritariamente muçulmano durante Ramadã e Natal e Carnaval. Eu achei tudo "muito árabe", ele "muito ocidental"... tudo uma questão de ponto-de-vista.

E a conversa segue outro rumo. Ele olha as fotos de seus filhos sobre a mesa - temos quase a mesma idade, ele têm 2 filhos e eu ainda sou adolescente - e comenta sobre as belezas naturais da Argélia: 'lá tem DE-SER-TO" - e completa com desdém - "não é como esse desertinho daqui". Ele usa roupas simples, e quando o assunto é o seu maior desejo de aquisição, ele sorri e diz: "eu queria ter um cavalo". Uma esposa, dois filhos, um cavalo. Desejos bem distintos do gosto por roupas e carros caros que fazem parte de um certo lifestyle que atrai muita gente - inclusive seu chefe - mas não supreende: cavalos fazem parte do imaginário árabe.

Volto ao vigésimo sexto. Em vinte minutos, um e-mail do DBA dizendo que já estava tudo OK. Depois do almoço, mais um problema de espaço: o DBA já não está mais lá. Tudo bem, amanhã resolvemos isso. Inchallah.

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