11.6.07

Olinda

Sexta-feira, noite em que se iniciam os primeiros festejos. A cozinha está arrumada: pratos lavados e secos, talheres organizadamente dispostos na gaveta, colheres na baia de colheres, facas na baia de facas, garfos dispostos perpendicularmente. Sobre a mesa de 4 lugares, apenas o baralho sob a luz da luminária. É fevereiro, e apenas o alto pé-direito da casa impede que o calor, natural desta época, seja insuportável.

O telefone toca, toca e toca mais uma vez. E mais uma vez, cai na secretária eletrônica. "Vamos pra rua, cara! Pára de graça que estamos vendo as luzes acesas." São os velhos amigos. abaixou o volume. Há anos é sempre assim: quando ainda jovem, despedia de seus pais, que ficavam na mesa da sala jogando cartas. Ele dizia: "Vamos pra rua!", eles respondiam, "ih, filho, já foi o nosso tempo". Ele saía enquanto eles ficavam ali, concentrados em suas cartas, com gargalhadas esparsas cortando a noite. Antes de sair, olhava intrigado para as duas criaturas e ainda se perguntava como é que alguém poderia ser feliz jogando cartas em pleno carnaval. Despedia-se e saía: os mesmos amigos já estavam à porta.

Valério embaralha mais uma vez o maço de cartas. Tentava assim controlar o forte instinto de sair e buscar qualquer outra forma de excitação visual, sonora ou gustativa que o distraísse e por fim o fizesse esquecer de suas dúvidas e anseios que
mais horas menos horas, voltariam com mais força em outro momento. Decidiu que aquele era o momento para uma auto-avaliação. Por que o medo de ficar só? Por que esta ansiedade em buscar uma atividade qualquer? "É preciso se suportar", pensou.

Ouviu os recados na secretária: "Ei, cara, não enrola...", "vem logo que o bloco já vai sair". E por fim, a última: "... oi, bem... sei que é dia de festa... talvez nem esteja aí...(suspiro)... liguei apenas para te enviar um beijo. Te amo".

Fora os amigos, sobrou pouco daquele tempo: fotos na estante e dores sufocantes abafadas em um canto qualquer do sótão da memória, e que por vezes vinham à tona para, mais uma vez, serem empurradas e comprimidas e amassadas no buraco do esquecimento. Deixa o baralho na mesa e procura repouso no sofá, ainda é coberto pelas mesmas cobertas que sua mãe fazia toda noite em frente à TV, mesmo com a insistência do oculista de que isto lhe fazia "mal para a vista", e viu diante de si a gaveta que há anos não abria. Tomou coragem: abriu. Lá estava o velho estojo de madeira que distriu o velho por anos a fio: toda tarde, ele abria a janela, sentava em seu parapeito e abria o estojo. Com a pequena faca, limpava o bocal do cachimbo raspando a lâmina em minuciosos movimentos circulares, até que não restasse nada no orifício. Abria então o pequeno saco do estojo e tornava a cobrir o buraco com fumo, que comprimia com a lâmina da mesma faca. Acendia o cachimbo e olhava a cidade, e ficava ali parado, indiferente às reclamações da mãe, que basfemava contra a fumaça que invadia a sala. Valério fecha os olhos e respira fundo: ainda sente no cachimbo o mesmo cheiro de pus das feridas letais que apareceram primeiro no céu da boca, depois nos lábios, depois um inchaço no pescoço, a perda do apetite, a febre intermitente... o médico disse: "Sinto muito. Deixe-o continuar a fumar, se assim o quiser".

Ainda restava um pouco de fumo. Controlou sua aversão e acendeu o cachimbo, e fumou, mas não abriu a janela: limitou-se a observar a fumaça subindo lentamente. Sentimentos opostos: a saudade do pai e o horror do cheiro de morte certa. Deu mais um trago (sem puxar para os pulmões) e deixou mais uma vez a fumaça no ar.

O telefone toca mais uma vez. Hesita. Secretária outra vez. Suspiros. Correu, atendeu o telefone. Tarde demais, a ligação já caiu. Parou sobre a cômoda e ouviu mais uma vez o penúltimo recado: "te amo". Olhou os retratos sobre a cômoda: "Então por que partiu?". Sentimentos opostos: saudade, um pedaço que falta; ódio, imperdoável rejeição. Perguntou-se então a si mesmo por que razão a deixara partir para tão longe e sentiu-se impotente diante da realidade: ele mesmo deixara um bom emprego atrás de um sonho que até o momento não se concretizava... e ela não fizera qualquer objeção ou comentário, embora nitidamente reprovasse a sua atitude. E agora, ela apenas seguira seu sonho ao se mudar para um país distante. Lembrou da alegria em sua face ao dizer eufórica que conseguira um trabalho em uma loja em um centro comercial de luxo no Oriente Médio. E a gente? "Depois a gente vê", disse ela.

O barulho dos blocos se aproxima, ele abre a janela e junto com a brisa fresca da meia-noite entra também o barulho surdo dos tambores e das vozes que cantam uma velha música de Alceu Valença. Valério senta-se ao seu sopé e se junta ao coro:

Olinda
Tens a paz dos Mosteiros da Índia
Tu és linda
Pra mim és ainda
Minha mulher
Calada
O silêncio rompe a madrugada
Já não somos aflitos nem nada
Minha mulher
Tu voltas
Entre frutas, verão e tu voltas
Abriremos janelas e portas
Minha mulher


(Continua).

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