5.11.06

O individualista consumista, coletivos de periferia e o motorista pontual

Já imaginava a mini-geladeira prateada de 379 dh dentro do quarto exacerbando seu individualismo, evitando assim momentos desagradáveis como acordar de manhã sonhando com o iogurte comprado na noite anterior e descobrir que este foi devorado por alguém que acordou um pouco mais cedo e exerceu o coletivismo em toda a sua plenitude às custas alheias.

No Carrefour, reflexos de economia aquecida: a geladeira que há 2 dias ainda está lá agora conta com um papel colado no anúncio: out of stock. O famoso "tem, mas acabou". O melhor dia para comprar é de fato a quinta-feira: os estoques estão cheios e a horda sagaz (belo adjetivo, sagaz) de compradores insaciáveis ainda está se preparando para devastar as lojas nas sextas e sábados. O atendente diz: "volte a ligar na quarta... ou na quinta, inch'allah...". Esse filme é conhecido: a quarta vira quinta, que vira sexta da outra semana, que vira uma frustração. Aqui, ou é na hora, ou não é. Nada de inch'allah. Neste aspecto, a pergunta a se fazer é: quanto custa o sossego?

O táxi do Mall of the Emirates custou 60 dh até o Dubai Festival City num percurso de aproximadamente 20 km. Com os mesmos 60 dh, enche-se o tanque de um Mitsubishi Lancer, autonomia para 500 km. No IKEA, a estante custa 160 dh, mas há uma outra menor por 79 dh. Mas espera um pouco: não se gasta 60 dh de táxi para comprar uma estante de 79 dh. Lógica consumista: melhor ficar com a maior "para compensar". Só que a estante é grande, não cabe no táxi. Então é preciso pagar mais 100 dh de frete. Então, "para compensar", vale a pena levar junto no frete também a geladeira, a mesma do Carrefour mas de cor branca, por 395 dh, do HyperPanda. Mas como o motorista não é bobo, já embutiu no preço mais 30 dh da geladeira "porque é um peso extra". Se a compra fosse de 3 estantes, 1 cama e um guarda-roupas no IKEA seria 100 dh, mas com a geladeirinha, tem o adicional. Malandragem, malandragem.

19:30h, fim das compras, hora de de voltar para casa. O segurança filipino dá a super-dica: "Vá de coletivo sim, está fresco, bom pra caminhar. Vire aqui, vire ali, atravesse a pista e lá do outro lado tem um ponto de ônibus. Fácil!" Após seguir as indicações, descobre-se por fim que o ponto de ônibus é um poste ao lado de uma cratera lunar do outro lado da estrada, sem que haja um caminho seguro para o pedestre atravessar. Aliás, não há nenhum lugar para o pedestre, que se espreme entre os cones de construção, blocos de cimento e os carros que passam buzinando a mais de 100 km/h demarcando seu território. Veículos automotivos deveriam ter pênis sob as rodas traseiras, para que pudessem fazer como cachorros e urinar nos postes, demarcando assim seu território, sem buzinar. A solução é andar na contra-mão até encontrar 15 minutos depois mais 2 filipinos saindo de uma construção. "Aqui não tem ponto de ônibus do outro lado. Tem que pegar um coletivo aqui, e lá na frente trocar". E assim um ônibus passa e assim acontece.

Na primeira fileira há 2 filipinas, na seção do ônibus exclusiva para mulheres. São as únicas mulheres do recinto e são observadas em silêncio por mais de 30 homens, todo da construção civil, que só tiram os olhos delas para olhar para o único passageiro ocidental. Curiosidade que assusta.

O ônibus de 1,5 dh abre a porta em mais um canteiro de obras. Mal se desce do ônibus e um táxi passa buzinando com velocidade incompatível para aquilo deveria ser o ponto de ônibus, levantando a poeira no meio da rua cheia de cones. Atravessa-se então a pista e o que se vê é uma lanchonete indiana, com mais de 50 pessoas, todos homens. No ponto de ônibus, mais algumas dezenas de homens que esperam um coletivo para o centro. O local se chama Al Rashidyia.

40 minutos de espera é tempo suficiente para fazer e responder a perguntas:

"Você conhece Leila Barros, que joga vôlei?"
"Brasil fica na Europa?"
"Se o Brasil fica na América, então você entra nos EUA sem visto, né?"
"Que língua se fala no Brasil além do inglês?"
"David Beckham é brasileiro, não é?"
"Mas ele joga em um time brasileiro, não é?"

E por fim, perguntas difíceis:

"O que você faz aqui?"
"Por que Dubai?"
"Quanto você ganha?"

A última pergunta não foi feita, mas ficou implícita: "Por que você está usando ônibus?"

Ecos de uma questão conhecida da classe-média brasileira, implícita na compra da geladeira, e cuja justificativa às vezes está na necessidade imediata, às vezes na sua eficiência, às vezes no status proporcionado pela escolha: por que usar um serviço público quando se pode usar um privado?

Chega o coletivo. Este custa 2 dh. Seu trajeto é sinuoso e mostra coisas que não se vê ao lado das grandes avenidas ajardinadas, como o letreiro iluminado de uma academia de musculação com a foto de um homem de bigode e peito peludo fazendo força, ou a cortina semi-caída na janela empoeirada de um restaurante decadente de esquina. Passa pelo aeroporto, dá outras voltas, e a medida que se aproxima da cidade, mulheres - filipinas - entram no ônibus, até que por fim este chega a seu ponto final em Al Satwa. Caminhada até Al Wasl Road, e após 10 dh de táxi, chega-se por fim à casa, onde à porta um caminhão espera para realizar a entrega de uma geladeira e uma estante.

O dono do caminhão é malandro, mas é pontual: 22h, como combinado.

2 comentários:

Vi e falei disse...

Rosto do jeito que vc escreve. Tenho lido bastante sobre Dubayy e o seu blog é interessante para conhecimento do dia-dia por ai.

Anônimo disse...

e quanto custaria pra ele te levar junto no caminhão? aUHuahuaHUAUH