26.9.08

Paris

Fim de tarde de uma segunda-feira chuvosa. A mulher procura meu nome nos arquivos.

- Voilà! - e me entrega o envelope.
- O resultado já foi enviado para o doutor?
- Sim, monsieur...

Era um exame de sangue simples de rotina. Na última hora, pedi que adicionasse os testes de HIV.

- Sem problemas! Adiciono também o teste de Hepatite C, d'accord?

O trato era esse: em caso de qualquer anomalia, ele entraria em contato. Mas 17h era ainda muito cedo. Em vez de abrir o envelope, preferi seguir até o metro com o envelope na mão.

RER A, destino Boissy. Carro de 2 andares. Escolho o banco mais ao fundo do andar mais alto. O dia não era dos melhores: no dia anterior, terminara um relacionamento com a mais recente "mulher da minha vida". Isso dói, mas não era a causa do tormento: há muito que já não usávamos preservativo. Ela estava tranqüila, convencida com minhas respostas. Eu não: omiti fatos, aleguei que não havia risco e não a protegi de minhas dúvidas. Agora, envelope na mão, tinha ali uma resposta com um potencial devastador que extrapolava a minha existência... eis aí uma boa definição de remorso: quando se constata que o seu destino, como uma nau descontrolada, acerta em cheio o barquinho alheio, muitas vezes tão especial. Eu sentia remorso do que não acontecera, e isso me tirava a fome, travava a respiração e trazia um estranho calafrio nos ombros. Em meio ao turbilhão, pensava em todas as hipóteses e em algo que me confortasse e me trouxesse dignidade caso o pior caso se confirmasse.

Deixemos o envelope devidamente fechado. Ainda não é hora de abri-lo. Voltemos a onde tudo isso começa: Teerã, dezembro de 2007.

Assim dizia minha avó

Manhãs de domingo de sol. Porta da copa aberta, vento entrando. A família dividida entre o lado de cá e o lado de lá da mesa. O avô, próximo da TV, fala de futebol.

- Quando eu morrer, vou direto pro céu.

A família se olha com olhos grandes e por fim, a própria avó ri do absurdo que dissera.

Sim, disse absurdo. Creio que, no fundo, todos em minha família são incrédulos também. Mas têm tanto medo da morte - o tempo que pára, a ausência de luz e de som, ausência até mesmo do próprio nada - daí esses olhares de olhos grandes que tanto dizem.

E você se pergunta o porquê agora de lembrança de fato tão corriqueiro. Relato-o por constatar nas palavras de minha avó algo tão humano; esta necessidade de, no íntimo de nossos processos mentais, justificar-nos e de sempre nos perdoar. Tal avó, tal neto: se ela, que jamais andou de avião, encontrara ao fim da vida uma razão justa para se outorgar um lugar ao céu, também busco eu em cada ato aquilo que melhor me convém. Cada linha escrita é a razão que corre atrás de meus desejos, providencialmente para que nenhum ato seja vão.

Caro leitor, deixe então que estas linhas corram soltas, como o purgante que purifica o corpo. O importante é que, ao final, eu também esteja convencido da máxima de minha avó.

Impossível você diz

Juliana deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Ultimato para as "shared villas" em Dubai":

Mas me conte uma coisa, eh simplesmente impossivel nao gastar tanto em aluguel??? E vc eh obrigado a depositar o aluguel anual?? Assim eh impossivel ir para os encantos de Dubai. que alternativa temos se conseguimos um emprego em Dubai para nao pagar alugueis tao caros??


Postado por Juliana no blog Dubai F. C. em Quarta-feira, 24 Setembro, 2008

Caríssima Juliana,

Não entendi muito bem essa parte dos "encantos" de Dubai. Em todo caso, não existem coisas impossíveis. Mas, digamos, há coisas possíveis que talvez você não queria vivenciar. Se é que você me entende...

Geralmente, para trabalhos temporários (até 6 meses), aviação, ou ramos muito especializados (engenharia de petróleo, finanças) as empresas oferecem alojamento ou hotel. Para todos os outros casos, é "na raça": as empresas oferecem como parte do pacote salário uma parcela chamada housing allowance para ser gasta com acomodação, e que salvo grandes exceções, não cobre o aluguel de um apartamento digno. No fundo, é uma maneira das empresas te darem um "balão", na hora de pagar prêmios ou aumentos (baseados sempre no salário-base).

Para ter um contrato bonitinho, preto no branco, o mais comum em Dubai é mesmo se exigir um cheque anual, ou com alguma conversa, 2 cheques. Algumas empresas oferecem o "benefício" de adiantamento do primeiro ano, e assim, a empresa deduz as parcelas do seu salário. No ano seguinte, é você que tem que se virar!

O grande problema é que, com a forte diferença cultural, poucos chegam em Dubai com essa certeza de ficar 1 ano, dispondo-se a pagar o aluguel adiantado. É aí que entra a conveniência das tais casas compartilhadas...

Enfim, minha cara, como eu já disse antes: Dubai não é para crianças.

Abraço de ex-sheik,

Luís

24.9.08

Ultimato para as "shared villas" em Dubai

Iterrompo aqui a série "As prostitutas chinesas" porque eu quero a sua opinião, caro leitor: o que você acha deste ultimato de um mês dado pelo governo de Dubai aos moradores de colocação em Dubai (as "shared villas") para saírem de suas residências ?

Apenas algumas informações:

- o aluguel de um quarto com banheiro em Dubai em uma "shared villa" custa entre 4.000 e 8.000 dirhams por mês. Como ilegal, tudo é feito sem contrato. Mais caro que alugar um apartamento em Paris, com contrato no seu nome, e tudo mais;

- alternativas para quem mora uma "shared villa" em Dubai:

- alugar um estúdio em International Village a um preço equivalente (a 15 km da cidade no meio do deserto e mal-provida de transporte público);

- alugar um estúdio em empreendimentos de luxo como Marina, Al Barsha... detalhe: um estúdio na Marina não sai por menos de 10 mil dirhams por mês. E tem que pagar o aluguel anual com um ou dois cheques de uma só vez. Quem é que agüenta?

- ah sim! Há outras opções, como morar em Sharjah, onde o consumo de álcool dá cadeia, ou ainda em Ajman. E passar 5h do dia atravancado em congestionamentos;

É no mínimo curiosa esta "cruzada contra os solteiros" neste exato momento de crise no setor imobiliário internacional, em que especialistas no setor apontam para um aumento na oferta de imóveis vagos em Dubai e quem sabe, uma correção nos preços dos apartamentos (ou você realmente acha que há motivo para um apartamento em Dubai custar tão caro quanto em Paris?).

Fica um cheiro de deslealdade no ar: o governo querendo resolver os problemas de seus amiguinhos especuladores com o dinheiro e destino de quem ajuda a tornar Dubai o que é.

E cá entre nós, imagine esta situação: você ganha um salário de, digamos, 15 mil dirhams/mês. Você paga o seu aluguel de 5.000 dirhams mensalmente para morar em um quarto em frente ao mar. Você acha que valeria a pena continuar em Dubai sendo forçado em um mês a trocar o seu quartinho perto do mar e no centro da cidade por um estúdio cafofo no meio do deserto, tendo ainda que pagar um ano adiantado em dois cheques? O ainda melhor: comprometer-se com um aluguel de 10 mil dirhams/mês na Marina, que consome mais de 50% de seu salário, e para tal, terá que fazer um financiamento no banco para o adiantamento. Você acha que valeria a pena ficar em Dubai?

Pois é exatamente essa a realidade da maioria das pessoas que vivem em casas compartilhadas em Dubai. E se essa gente pesar bem as coisas, vai ver que não vale mais a pena ficar na cidade, que o sonho ou nunca existiu, ou já acabou faz tempo.

Arrumar as malas e ir embora é o maior trunfo na mão de um expatriado em Dubai. Porque sem ele, solteiro ou não, Dubai não é nada.

Cyclone

Dubai, meados de setembro de 2006. Véspera de Ramadã. No trabalho, o grupo marca o encontro: Cyclone. "É um dos poucos bares abertos que venderá álcool", alguém avisa.

A entrada não é barata: 75 dirhams. Entrando no recinto, um choque: pela primeira vez em Dubai, um local com mais mulheres do que homem. Tudo bem organizado: aproximadamente 50 chinesas à esquerda. À direita, em menor número, européias, russas, árabes. São mais caras. No extremo canto direito, um palco. "Está desativado", disse o garçom. "Durante o Ramadã, não é permitido música ao vivo".

Que saborosa surpresa: em véspera de Ramadã, um dos poucos bares a vender cerveja é um prostíbulo! E não estamos no meio do deserto: o Cyclone fica ao lado do American Hospital, centro de Dubai. Aliás, ficava: o estabelecimento foi fechado pela prefeitura em meados de 2007, quando a caça às bruxas, ops, prostitutas, começou. Mas isso não vem ao caso, pois ainda estamos em 2006, e o garçom traz pipocas gratuitas para acompanhar nossas cervejas à 30 dirhams a long neck.

Sob o vidro grosso do balcão, um papel com uma frase: "Não viemos no mesmo navio, mas estamos no mesmo barco". Frase que expressa bem o sentimento do grupo: "que merda estou fazendo aqui?". Após a primeira cerveja, o Vítor reclama: "então, minha namorada começou com uma estória de que não sabe se quer continuar...". Uma história que se repete, e que geralmente termina com o mesmo fim.

No pátio à esquerda, o taxista de turbante, o economista asiático, os loiros europeus de terno. Risos, cervejas. Em cada riso, o mesmo sentimento revanchista: "Você me rejeita? Então eu pago!!!". O jeito masculino de resolver as coisas.

Eu sei leitor: você ri. Ri porque acha que se dá muita importância a isso. Isso porque você está aí no Brasil ou em Portugal, onde você leva uma vida normal: mesmo que nada aconteça, sempre tem o charme da mulher do café, a promessa da garota da banca de jornal... vivemos todos de esperança. Mas até isso tiram de você quando se vai a Dubai. A realidade de um um país com uma proporção de 4 homens para cada mulher é seca. Dubai é um garimpo de luxo. E convenhamos, se você é solteiro em Dubai e não trabalha na Emirates, você tem grandes chances de estar em maus lençóis...

Saímos do balcão, aproximamo-nos do setor chinês. As garotas se aproximam. Salto alto, saias curtas, e muita maquiagem. "Hi, you ale beautiful!". Carinhos, cafunés. Carinho... como é bom ser bem tratado por mulheres. Tentamos manter conversa:

- Where are you from?
- Beijing.

Interessante. Ela e todas as outras 49 chinesas do recinto são de Beijing. Coincidência ou simplesmente o mesmo agente? Tentamos aprofundar o assunto:

- And what's your name?
- Beijing.

Difícil, inglês calamitoso. Na dúvida, a resposta é sempre "Beijing". O Vítor já emenda com sua grande presença de espírito:

- Aí galera, ela quer beijim! Ela quer Beijim!

As garotas riam. Mas o tempo passa e elas não têm tempo a perder:

- You want massage? Massage?
- How much?
- 700 dollars.

O preço inicial assusta. Mas esse é o preço das russas. Todos sabem que esse preço pode ser reduzido a algo entre 300 e 600 dirhams com uma boa conversa. Com um pouco mais de procura, pega-se esse preço com serviço de "delivery".

Os 2 ingleses de terno saem abraçados com 5 chinesas. Necessidade de auto-afirmação. Mas a gente só está ali para uma cerveja, então compramos uma ficha de bilhar e ficamos ali, "fazendo hora": um dá a tacada, enquanto o outro protege a caçapa para a bola não cair, e assim, prolongar o jogo.

São 2:30h: a luz aumenta de intensidade, e os seguranças fecham o cerco. Hora de fechar o "bar". Todos pra rua, sem exceção. Os seguranças empurram sem nenhum respeito as garotas que fazem uma "cera" para sair. Os mais jovens tentam ali suas últimas fichas para ganhar um desconto.

Oras, leitor. Veja como o seu pensamento é mesquinho: eu aqui fazendo um relato de interesse antropológico e você aí só quer saber daquilo que não lhe concerne: se eu dei ou não uma "metidinha". Oras, leitor, como você é vulgar, baixo, vil. É por isso que a nossa relação é de amor e ódio. Eu te odeio, leitor. Leitor, eu te amo. E o amor presume fidelidade. E só por esta razão e nenhuma outra, que naquela noite de descobertas de véspera de Ramadã em 2006, mantive-me casto.

Mas leitor, meu amor, meu ódio: mantenha-se atento. Atento, pois pensando bem, agora ficou claro: a história não começou aqui, embora explique muita coisa. Voltemos ao futuro, em que o Cyclone já não existe mais, varrido do mapa pelas políticas moralistas do Governo de Dubai. Futuro que já é pretérito no momento deste relato.

22.9.08

Eu não sei

Sinceramente, eu não sei como começar essa história. Embora saiba exatamente como ela termina, não sei exatamente onde ela começa. 2006? 2007? Pouco importa.

Pouco importa, leitor, eu sei.Independente do fim, você não a lerá, pois este - já aviso de antemão - não é um texto sobre empregos em Dubai. Pouco importa o que está escrito: você quer a resposta rápida, personalizada, por e-mail ou telefone, um emprego sob-medida em Dubai. Pouco importa o resto: você está cego pelo brilho do Burj Al Arab e prefere quebrar a cara.

Pouco importa o resto: escrevo assim mesmo. Simplesmente porque preciso botar pra fora esta história que me incomodou e que ainda me incomoda (não, não é cocô na porta).

Decidido: voltemos a 2006. Com vocês, um pouquinho de realidade.

8.9.08

Sheik is not dead

Anônimo deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Diretivas para "Sheik Luís responde" e "Empregos"":

Oi Pessoal!Acabei de descobrir esse site e realmente posso lhes dizer que esse Sheik nao existe aqui em Dubai onde moro ja a 8 anos.
Ele lhes pregou uma grande mentira!
Perguntem a ele seu sobrenome? Tenho certeza que nao podera mentir pois se personificar o sobrenome de um verdairo Sheik daqui ele entrara em grandes problemas.Deve ser Milk Sheik de Banana. A proposito, Dubai e pessimo. Quando cheguei aqui era otimo lugar, 8 anos atraz. Hoje e uma cidade ocupada e conduzida por Indianos que somente favorecem a Indianos. O povo e muito feio em geral. Oque voces veem pela tv ou fotos e somente a parte nova com belos predios onde ninguem mora pois sao predios vendidos a investidores internacionais que so compram p/ trancar e esperar o preco subir. As praias sao sujas e poucas, com uma populacao enorme de Filipinos comendo frango frito na area e mulheres de vestidao preto entrando na agua e pakistaneses escarrando na agua. As acomodacoes para trabalhadores, sao pessimas. As vezes ate dez pessoas dividindo um quarto.Nao existe nem um direito para o trabalhador. O rompimento do contrato de trabalho e algo muito serio aqui. Eles seguram seu passaporte e nao os deixam voltar ao seu pais.Um calor insuportavel com uma humidade altissima, nao se sobrevive sem ar condicionado.Nao e nada tao lindo como o pessoal pensa por ai.Estou para sair daqui deste terceiro mundao.Realmente nao consigo imaginar um Brasileiro vivendo aqui com os salarios miseraveis que vi em alguns anuncios oferecendo emprego. Quanto a comecar seu negocio aqui. Cuidado, voce jamais sera dono/a dele, pois sempre pertence ao sponsor local que controla tudo. Os gastos sao enormes e nao vale a pena. Aluguel aqui anual de um apto de um quarto e sala da para se comprar uma casa de 3 quartos todo ano no Brasil.Toda a grana que ganhar aqui fica por aqui. Pense bem

Postado por Anônimo no blog Dubai F. C. em Segunda-feira, 08 Setembro, 2008

Caro Sr. Anônimo,

Suponho aqui que você tem uma característica nata que lhe impede de ver a Verdade. Algumas suposições:

a. Você não consegue desfrutar do sabor da ironia pois "não tem olhos para ver";

b. Você não enxerga o brilho no olhar nas crianças que gritam no Natal: "PAPAI NOEEEEL!". Você é o estraga-prazeres que vai dizer às criancinhas que Coelhinho da Páscoa não existe;

c. Você talvez não tem senso de humor;

Larga a mão de ser chato! Deixe as pessoas viverem suas fantasias. Você, assim como eu, sabe que bem menos de 1% das pessoas que lêem esse blog conseguirão alcançar o "Prêmio Supremo", o "Santo Graal": um emprego em Dubai em pleno verão. Dubai, o paraíso dos arquitetos e dos en-di-nhei-ra-dos! A terra do Futebol (com F maiúsculo). Terra onde o Prazer (com P maiúsculo) jorra como rio, como dinheiro. Terra onde todos têm Masseratis (e por isso são mais felizes, não?).

O Sheik existe? O Sheik não existe? Jesus realmente ressuscitou dos mortos? Papai Noel existe? Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim? Caro Sr. Anônimo, você, que já mora há 8 anos em Dubai há de convir comigo que a esta altura, isso tanto faz. Lembre-se que os sheiks são oniscientes e, sobretudo, onipresentes. Eu estou em Dubai, eu estou em Paris. Eu estou em São Paulo. Eu fluo pela internet: estou em todos os lugares.

Outro dia li algo a respeito que dizia algo mais ou menos assim: "toda história, verdade muito verdadeira ou mentira muito cabeluda, tem sim um fundo de verdade pois ganham vida nas sensações bem reais que proporcionam: alegria, tristeza, angústia, medo, vontade de mudar, ou de ficar onde se está. E apenas por isso já valem a pena."

É isso aí. O meu prazer é te ver chorar. Mas fiquei com uma dúvida: 8 anos. Como você aguenta? O que ainda está fazendo aí? Ganhou o prêmio Asceta do ano. Você disse também: "Indianos que favorecem indianos"... e isso é diferente entre brasileiros? E com ingleses? E entre os árabes? Veja bem, meu caro, panelinha é um recurso tipicamente humano.

Bom fim de verão e beijocas do Sheik Luis