10.11.08

Happy new year

"Quando eu morrer, vou direto pro céu". Repito-me renitente a máxima quando a mente, tal qual um promotor público obcecado pela auto-promoção, lança voraz baldes de culpa sobre mim. Auto-engano ou salvação?

Foi com a melhor das intenções que passei meus contatos para Yoko. Ela dissera que dentro de um mês, passaria por Dubai e queria um contato para tirar dúvidas. Foi logo depois da celebração do Ano-Novo: meia-dúzia de estrangeiros reunidos na cozinha do Hotel, tentando se aquecer. Silêncio na cidade: segundo o calendário iraniano, o Ano-Novo - Nou Ruz - coincide com o início da primavera, de modo que em 31 de dezembro é um dia qualquer e 1o de janeiro não é feriado. Não: alguns comemoram. A dica dos iranianos é de procurar por festas no bairro armênio, que comemoram estas datas, Natal, Ano-Novo... mas estava muito frio para isso.

Na mesa, variedades de pistache e sementes de girassol em vários tamanhos e formas cuja casca os iranianos quebram girando a semente entre os dentes frontais, restando na língua apenas o miolo; anos de dedicação a este hábito moldam os dentes, conferem agilidade automática e precisão incompreensíveis para quem vem de fora: iranianos se divertem com o estrangeiro que, no afã de quebrar a casca, despedaça a semente na boca e por fim aceita a derrota, mastigando casca e miolo.

Na mesa, refrigerante de cola iraniano. Saiba você: o ser humano tem necessidade de beber refrigerante. Não qualquer refrigerante: refrigerante de cola. Não qualquer refrigerante de cola: refrigerante de cola em embalagem vermelha. Algo que se pareça com Coca-Cola. Se possivel a genuína. Mas esta nao existe no Irã...

Coca-cola, Zara, Adidas. Necessidade de consumir marcas. Devido ao embargo, ou talvez pela nao-proteção da propriedade intelectual, as grandes marcas não entram oficialmente no Irã, mas proliferam-se em falsificações vendidas no Grande Bazar. As genuínas sao vendidas nos elegantes centros comerciais em pequenas butiques, onde ainda se vê Papais Noéis e enfeites natalinos com a inscrição: "Christmas Mubarak!". Seus proprietários viajam a Dubai ou à Europa, enchem as malas e retornam ao pais com as novas concepções de liberdade, nobreza e confiabilidade.



Adibas, Abibas, Abidas. Azidas; são várias as marcas nas roupas e tênis de três listras dos jovens no metro de Teerã, mas a massa lembra ainda um Brasil de uma cidade do interior de uma distante década de 60, 70, 80: pessoas com seu único sapato, com sua calça social de um alfaiate, com sua única pasta de trabalho, onde guardam seus pertences.
Alguns lerão esta busca doentia das marcas como uma "busca provinciana do progresso", outros mais idealistas como "poluição capitalista"; atitude blasé: leituras feitas do alto da arrogância da liberdade e do excesso de acesso; as marcas são dispensáveis apenas para quem não precisa. Elas estão lá, disponíveis do outro lado do vidro; voce pode, mas não quer. Assisto a este teatro do metro quase me esquecendo de meu tênis All Star velho e rasgado que uso com descaso, fingindo não lembrar da exclusividade que desejo que me aporte.



Roupas de marca, refrigerantes de cola, pistaches e outras sementes sobre a mesa; é meia-noite de 31 de dezembro em Teerã e agora o grupo de estrangeiros se abraça e faz poses e sorrisos para infindáveis flashs de cameras digitais: felicidade é cada um com a sua. "Happy new year!". A esperança no futuro é uma das coisas mais curiosas no ser humano, principalmente quando olhamos para tudo o que se sucedeu com uma distância de quase um ano. Fico uma impressão de uma comemoração equivocada. Mais sensato seria: "Congratulations, we survived until here!".

Já passa da 1h da manhã, todos deixam a cozinha e se aglomeram no corredor ao lado do aquecedor a gás. Alguns fumam e o rapaz da portaria vem de tempos em tempos pedir que se fale mais baixo - há pessoas dormindo. Em meio a promessas de envio de fotos que jamais serão cumpridas, trocamos e-mails. Cada e-mail, uma intenção; sementes de uma árvore de possibilidades de eventos futuros que se realizarão ou não, segundo a próximas interações da vontade de cada um com a Fortuna.

Alguns psicólogos defendem que a Razão pode sim controlar a Vontade e que isso nos distingue dos demais animais; outros mais céticos julgam que a Vontade é a senhora do destino. Neste caso, a Razão seria apenas uma sofisticada maquina justificadora, advogada da Vontade, ocupando-se em manter o Conjunto convicto de que "está correto". Seriamos mesmo racionais ?

Sim: entregar-lhe o e-mail trouxe à tona um certo frenesi sobre as várias probabilidades que se abriam diante de uma garota atraente. Afinal, quais são seus reais interesses? Não: entreguei o e-mail embuído de um sentimento altruísta - ajudar por ajudar e um dia ser ajudado. Ilusões pudicas de um mundo melhor onde pessoas viajam pelo mundo trocando experiências e cortesias. "Quando eu morrer, vou direto pro céu", já dizia minha avó.

Nenhum comentário: