5:30h da manhã. Giovana, como faz diariamente há 50 anos desde que se mudou para cá, abre a janela da sala. Retorna, vai à cozinha, prepara o café. Come um pedaço do bolo que fez na tarde anterior e volta à cadeira de balanço com sua caneca fumegante.
Ela olha os retratos na parede: hoje ninguém mais faz estas pinturas de marido-e-mulher - ele de terno e gravata, ela de vestido e penteado - como este de seus pais. Os porta-retratos dispostos em diagonal sobre a cômoda... ela toma o café e lembra da noite que aos poucos se esvai com a claridade que entra pela janela: não foi nada boa. Há sonhos que por vezes a perseguem, como entidades, como coisas vivas, por semanas a fio, até por fim desaparecerem ou serem subistituídas por outros sonhos. Mais recentemente, os mais comuns são os sonhos-lembranças: ela revive durante a noite passagens que vivera há 10, 20, 50, 70 anos atrás. O sonho desta noite foi especial neste sentido, sonho metalinguístico: reviveu uma noite de sonho-pesadelo que vivera aos 7 anos de idade, e que a perseguia insistentemente durante a infância. Filha caçula de outros tantos irmãos, era a única com acesso livre ao quarto dos pais:
- oi, Vaninha... o que aconteceu? - a mãe no sonho-lembrança ainda tinha os mesmos cabelos castanhos sem tintura e recolheu a filha para dentro da coberta naquela noite fria. Todas as amigas lhe chamavam na infância de Gi, mas dentro de Casa ela era a Vaninha. Ninguém mais a chamava assim, ninguém mais a chama assim.
Ela não conseguia explicar o sonho que a perseguia e que persegue todos os filhos caçulas: acordara em uma manhã e abrira a janela: manhã de sol silenciosa. Foi a sala, foi a cozinha, foi ao jardim. Ninguém. Dava-se conta de sua nova realidade: pai, mãe, os irmãos mais velhos. Tios, tias, primos. Avós. Todos eram mais velhos, todos já haviam partido. Restara ela, caçula, como a única portadora das memórias da família, única testemunha ocular de momentos vividos, das festas de aniversário com refrigerantes e brigadeiros. Histórias que ninguém queria ouvir. Foi até a janela e gritou alto, e mais alto e mais alto: ninguém. Apenas um silêncio insistente em dizer 'você está sozinha'...
- deita aqui, calma que o papai está aqui. Está tudo bem... - seu pai no sonho-lembrança já tinha cabelos brancos, mas ainda era forte, antes da doença que nunca curava e que apenas o envelhecia chegar.
No dia seguinte, brincou com o irmão mais velho - que já era gente grande - a brincadeira que preferia: pulava de surpresa da janela em suas costas, pendurava em seu pescoço quando ele chegava da escola. Ele nem se importava. Apertou com os braços o seu pescoço e sentiu que aquilo era real. Realidade confortante. À época, seu irmão mais velho causava-lhe assombro: ele era forte, dava duas voltas no quarteirão correndo, e falava muitas coisas que ela não entendia.
Giovana levanta agora da cadeira, deixa ao lado a caneca vazia e vai até a cômoda. É incrível como memórias e sonhos são tão reais. Em sua estante, não possui nenhuma foto do irmão mais velho tão jovem como estava naquele dia pós sonho-pesadelo dos 7 anos de idade. Apenas uma foto em seu aniversário de 40 anos, já com seus 2 filhos e tão parecido com o pai. A esta altura, já não corria mais em volta do quarteirão.
Giovana vai até a janela: fecha os olhos e então o vê novamente passando, flutuando pela janela nas alturas do décimo andar como se ali a frente passasse a mesma rua. Achava interessante como o sonho-pesadelo, 90 anos depois havia se tornado realidade, e nem por isso lhe fazia chorar. Talvez essa seja a maior diferença entre os sonhos-pesadelos para os sonhos-lembranças. Pensava agora em seus avós, em seus pais, em seus irmãos, em seus tios, em seus primos que já haviam partido. Mas pensava também em seu falecido marido, em seus filhos que enfrentam agora os primeiros percalços da idade avançada, em seus netos e bisnetos. Tantas histórias, tantos brigadeiros e refrigerantes que talvez nem valha a pena contar.
Já passa do meio-dia. O velho telefone sobre a cômoda como de praxe não tocou. Quantos pensavam nela? Abriu a porta uma vez, antes da campainha tocar: hoje é terça, dia do gás. O rapaz entrou, trocou o botijão agradeceu com um sorriso a gorjeta e saiu.
É final de tarde, o sol se põe fazendo uma curva na janela até se esconder atrás de outro edifício. Ela se despede de seu irmão: é hora de fechar a janela.
27.4.07
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2 comentários:
Voce me fez rememorar coisas do meu passado que achava que tinha esquecido. Li, chorei, sorri. E, por fim, me deu uma vontade absurda de voltar a escrever, como quando era criança, como quando era adolescente e as palavras saiam facil. Era pura paixao. Obrigada. Acho que precisava de um pouco de sentimento, de um pouco de lembrança.
Muito bom! Foi uma narrativa excelente! Parabéns!
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