12.4.07

Café Sarajevo

Essa vai em homenagem ao sr. Anônimo. Besteira antiga, besteira pensada. Então pode, né?

Café Sarajevo

Era uma noite quente de inverno. Após uma semana de trabalho, nada mais merecido do que uma baladinha para alegrar os corações em plena quinta-feira. Aproveitando-se da presença de amigo ilustre, que deixou as várzeas do interior para trabalhar na capital, a opção feita pelo anfitrião foi a de se fazer um programa prosaico e
democrático, visando conhecer uma faceta da cidade que vai além dos clichês de carros percorrendo grandes distâncias atrás do "el dorado": saíram a pé pela Rua Augusta.

O destino não foi nenhum prostíbulo, embora tal opção não fosse mais do que apenas mais uma opção de diversão e de prazer para aliviar as grandes dores existenciais. Entraram então por uma porta de ferro que dava acesso a uma escadaria iluminada e laranja. Na calçada, uma família terminava de limpar e desmontar seu négocio: uma venda de yakissoba que alimenta os famintos usuários de transporte coletivo.
Verdadeira chantagem vender comida em frente a um ponto de ônibus.

Após as escadas, um ambiente eclético: no hall de entrada, músicos tocam jazz. Nos demais ambientes, uma sala com internet café, um sebo e um ambiente com som eletrônico e motivos indianos. Espaço com nome de terra devastada, em lembrança aos duros tempos de fundação, quando o local sofria intenso bombardeio dos prédios vizinhos, contrariados com o barulho. Restava uma sala, com luzes vermelhas e velas, ainda fechada. E assim, a porta se abre e uma moça coberta de panos brancos
convida a todos para entrar.

Não havia motivos para que os dois amigos se recusassem a entrar e a se sentar nos bordos da sala, e assim o fizeram. Neste instante, desta maneira também o fez uma jovem garota, cabelos escuros e curtos e despenteados, pele oleosa, blusa azul. Seu corpo até possuía certa elegância que ela preferia esconder sob uma calça larga. E como seriam os pés de tal garota? Seriam eles macios e sedosos? Estariam suas unhas devidamente cortadas, quiçá pintadas para o deleite de um hipotético apreciador? Impossível saber, estavam escondidos sob másculos e desproporcionais coturnos. Não há mais o que descrever deste ser humano, além de dizer que ela possuía um piercing no nariz.

A garota sentou-se no outro lado da sala. Sugou o canudo que trazia o líquido gazeificado da lata a sua boca fitando os dois mancebos a sua frente. Mudou de idéia: "Posso me sentar aqui?" Perguntou já sentando-se entre os rapazes, que não tiveram muita escolha. Ao sentar, sua mão repousou sobre a perna de um dos indivíduos.

Milhares de coisas passam na cabeça de um homem quando uma mulher repousa sua mão sobre sua coxa. Milhares de outras coisas mais se passam quando isto ocorre em público por uma autora desconhecida. A mão que caminha vagarosamente sobre a coxa, os olhares de desejo das pessoas a sua volta, o estio sexual, tudo isso contribui para que o pênis do pobre mortal não resista a uma vigorosa ereção. A moça, em
retribuição, deslizou sua mão e iniciou uma massagem na referida área sobre a calça olhando no fundo de seus olhos, para o delírio dos espectadores - espalhados pelos cantos da sala - e para desespero da atriz que iniciara a pouco um desafiador monólogo.

A garota excitou o rapaz. O objeto direto da oração ficou confuso: o que fazer? Olhar nos olhos da garota e se entregar ao mundo dos prazeres em público ou manter a compostura, assistir a peça como se nada estivesse lhe acometido? Os olhos dos demais espectadores ardiam a sua frente. Todos queriam estar ali. Outros simplesmente ignoravam o espetáculo, como o rapaz ao lado que, impassível, seguia sério assistindo à peça que se desenrolava no centro da sala. Alguns riam alto, outros apontavam o dedo. Ele não sabia o que fazer.

Aproveitando-se da hesitação alheia, a garota sentiu-se livre para atacar: arcou seu corpo sobre o outro e passou a devorar, lavar com a língua o ouvido esquerdo do rapaz. Com uma mão massageava a roupa, com a outra, segurava a cabeça e com o corpo pendia sobre o rapaz, que tombava sobre o vizinho. Então ela disse: "Você tem medo?". E a peça continuava... "Medo, eu?" Pensou o rapaz. Ele nunca havia
pensado sobre essa perspectiva. De qualquer forma ela poderia ter razão, pois ele cada vez mais evitava lhe fitar, embora não tivesse a energia necessária para interromper suas ações. A essa altura, a mão da garota já estava em contato direto e ativo com sua genitália. Por alguns instantes, o rapaz viajou em pensamentos, interrompidos bruscamente, quando a garota decidiu apertar, entre os dedos polegar
e indicador, vigorosamente um de seus testículos.

O rapaz, perplexo, olhava agora a todos no recinto. Apesar da dor, limitou-se a cercear seus instintos mais profundos e animais de gritar e vomitar. Seu ato talvez fosse mais castrador do que o da própria garota. Por sua cabeça, imagens de filhos correndo nos gramados do Ibirapuera, de propagação de seu código genético, de
perpetuação da espécie desmoronavam a cada beliscão...

Tomou coragem. Iniciou uma contenda com a garota para tirar audaciosa mão de seu falo. Agora ela já não chupava seu ouvido, mas mordia. E insistia: "Você está com medo?" ele ainda tentou explicar aquele misto de sensações desconfortáveis que sentia, mas não adiantou. A sua frente, agora, ele tinha uma dezena de pessoas talvez condoídas com tamanha tragédia que fingiam não lhe ver. A contenda seguiu em um mundo paralelo ao da peça, até que tão inesperada quanto as demais ações, esses dois mundo se encontram:

- Quem é Paulo? Alguém conhece o Paulo?
- Eu conheço, eu conheço...

Silêncio. A atriz e a garota interagem por alguns instantes até a atriz seguir para o outro canto da sala. Um misto de revolta juntou-se agora a sua dor sexual. Tudo teria sido previamente calculado? Seria ele apenas um fantoche, facilmente manipulado? Seria a moral da peça a desmoralização dos desejos mais primitivos de um pobre espectador? Sentiu agora sentimentos negativos de intensidade tão grande ou maior do que aqueles que sentiu no início da peça. Sentiu raiva. Sentiu-se um traste. "Eu sou um filho-da-puta! Eu sou um otário!" bradou em pensamentos.

Mais uma vez, a garota atira-se sobre ele. Mas ele agora é pedra, já não reage. Massagens já não surtem efeito. Seu olhar é fixo para a peça. "Por que você não me beija?" Indagou a garota. Agora a garota beija a boca cerrada de alguém que olha para o infinito. Em um último ato, deitou-se sobre seu colo. E desfecha uma suprema mordida em seu abdômen.

"Ai...". Um grito abafado ecoou na sala. Alguém de botas pretas se levanta e abandona o recinto. Todos apenas observam a cena e se entreolham. A garota não seria mais vista no bar. A atriz continua com impávida concentração em suas elucubrações. Por fim, a peça chega a seu fim em meio a aplausos. Era a "Valsa no. 6", de Nelson
Rodrigues, encenada em partes toda quinta a meia-noite. E então, a atriz pergunta ao público: "Por que as risadas?"

A noite continuou, com jazz, techno e samba. Em um comportamento típico das grandes cidades, todos voltaram ao seu anonimato habitual, todos se olhando com a discrição e reserva de quem não se conhece ou não quer ser incomodado. Comentários sobre a cena, apenas entre amigos. Um dos dois rapazes levou um empurrão nada amistoso em um
canto do bar e voltou para a casa com pontadas na barriga; sintomas de uma diarréia anunciada. O outro ficou um pouco mais, apesar das dores no escroto.

SL 11/09/2004

2 comentários:

Gnomo disse...

Quem era o Sr Anônimo? ;-)

Anônimo disse...

Putaquipariu! Vc me contou essa história, mas não sabia que tinha sido tão grave! Graças ao bom deus eu não estava lá! Senão teria espancado essa vagabunda e arrancado o piercing dela na unha!
Maldita!